sexta-feira, 10 de abril de 2020

Os 47 Ronins (Kenji Mizoguchi, 1941)


A autonomia das partes constitui o caráter essencial do poema épico (...) [Ele] descreve-nos apenas a existência e o atuar tranquilo das coisas segundo as suas naturezas, seu fim repousa desde logo em cada ponto do seu movimento; por isso não corremos impacientes para um algo, mas demoramo-nos com amor a cada passo”- Schiller 

Sobre homens em dilemas morais limítrofes, atormentados pelas trevas que lhes atingem e lhes obscurecem as estradas da existência. Na medida em que perdem seu mestre quando este é condenado ao ato do harakiri, consequência de uma confusão em que se coloca quando não engole as provocações de um tosco senhor feudal, estes 47 ronins - designação ao samurai que já não possui mais um mestre - e outros tantos ex-vassalos vêem-se caminhando na linha tênue entre a restauração do clã e a consumação do ato de vingança (ações irreconciliáveis). Quando se tem a notícia, muito tempo depois, de que o reerguimento da casa já não será possível, a vingança pode enfim ser performada. Entretanto, não há performance alguma. Os acontecimentos de todo o filme giram em torno de uma conspiração que não se vê de fato; o ato é apenas consumado, na imagem, quando a esposa do falecido mestre lê uma carta que relata os acontecimentos sucedidos na noite do assassinato. Está lá, na carta, o plano, o desenvolvimento e a conclusão que resulta na morte do senhor feudal, e a câmera de Mizoguchi, sempre a passear esplendorosa pelos cenários, aproxima-se em plano-sequência da esposa que lê o documento com pausas dramáticas, em instantes no qual o suspense desdobra-se em voz, respiração, ritmo. 

A isto se segue a belíssima cena em que os ronins levam ao túmulo de seu mestre a cabeça do senhor feudal que fora responsável por aquela sina. Em seus movimentos circulares de câmera, Mizoguchi transforma o que antes era a imagem do túmulo reverenciado pelos ronins em seu contracampo, a revelar os rostos destes homens que, ajoelhados, são acometidos por uma intensa sensação de plenitude. No final da cena, os guerreiros, resguardados pelo código samurai, optam por não cometer o harakiri naquele momento: é preciso antes responder legalmente pelos seus atos, ainda que saibam que as consequências finais serão as mesmas. Mas a espera pela morte é também o momento de usufruir da felicidade que lhes perpassa os corações já tão abatidos. E disto nos surgem outras cenas, cada qual mais bela que a anterior. Como se esquecer da sequência em que um dos ronins, quando estes já estão cientes da condenação à morte e se encontram apenas à espera da sentença, faz de sua flauta e de sua música um movimento perpétuo em direção ao sentimento mais nobre e sensível, como também o é o travelling que, neste momento, explora os corpos dos homens que a escutam e que nada demonstram além de agradecimento e satisfação? 

Há uma sequência, na primeira metade do filme, na qual o mestre dos samurais é levado em direção ao local de execução do harakiri. Junto a outro senhor, lamentoso pela morte do companheiro, ambos se despedem em frente ao templo. A porta se fecha sobre o acompanhante, que se ajoelha e chora pela situação do sentenciado. A ele é negado o direito de ver o mestre caminhar alguns de seus últimos passos na terra, mas isto não ocorre ao espectador: a câmera ascende aos céus, atravessando verticalmente o muro do templo, e em amplo plongée assistimos a caminhada derradeira. Já em outro momento, mais à frente, a câmera, que dantes filmava em plongée um dos ex-vassalos a observar o castelo em vias de ser entregue ao governo, movimenta-se em direção à terra quando este caminha à casa onde habitam os demais samurais. Da terra ao céu e do céu à terra. Esta é a história de homens com um pé no divino e outro no profano, entre o destino inelutável e os desafios e pesares terrenos. E se nos lembramos imediatamente de Lang no que concerne a noção de destino, não apenas isto como também a contenção da encenação, a rarefação dos gestos e a profundidade de campo em muito se assemelham ao que o cineasta alemão fazia na América. 

E há ainda os romances que desequilibram-se entre as juras eternas e o pragmatismo pontual de uma tarefa moral (os dois casais do filme se situam algures entre estes polos); as tensões sociais tanto em âmbito privado quanto público (este é, claro, um filme político); o olhar longo e calmo sobre os seres e as coisas (“demoramo-nos com amor a cada passo”); o salto temporal operado entre a primeira e segunda parte e seus ecos, suas ressignificações, suas releituras. 

Se há cinema mais experimental, desconheço. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário