quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Ride Lonesome (Budd Boetticher, 1959)

"Fora da Lei"

As medidas da intuição. Cavalgada Trágica e Homem que Luta Só, lançados quase ao mesmo tempo em Paris, são produto de um mesmo cineasta, Budd Boetticher, de um mesmo roteirista, Burt Kennedy, de um mesmo gênero, o Western, de uma mesma imagem, o scope a cores: dois reflexos de um mesmo espelho.

Semelhante, em comparação, por exemplo, ao conjunto Hellman/Nicholson, a equipe Boetticher/Kennedy transgride paralelamente os cânones hollywoodianos; paralelamente, mas em sentido contrário. Se Disparo para Matar era uma reação consciente contra certa cultura do cinema, em Boetticher as diferenças afloram intuitivamente, no interior da desordem. Homem que Luta Só é, antes de tudo, prazer de filmar comportamentos simples, ações sem motivos, uma maneira de viver: aquela mesma de Boetticher, que rompe - por acaso? - com certas hipocrisias codificadas, certas máscaras formais.

É preciso formular isto teoricamente? Vejamos quatro níveis de investigação, que cotejam o que há de mais novo sob o sol do cinema moderno.

As variações simultâneas. Roteiros idênticos, a partir de elementos idênticos, de acordo com uma estrutura idêntica, que varia: Aventureiro solitário / Vingança pela memória de uma mulher / Índios / Jovem mulher sozinha / Fora-da-lei / etc. Os lugares, como os trajetos, os personagens, como os atores que os assumem, são evidentemente análogos. De onde surge a única constante: Randolph Scott. 

Esses cubos que se encaixam, assim, variam estruturalmente de um filme a outro. Elementos depurados, reduzidos apenas às arestas dirigentes. Inseridos em uma decupagem nua, límpida. Cada plano logicamente direcionado para uma fase da ação, para um trajeto do ser.

Essas variações em cadeia tramam fatalmente o agenciamento dos planos. Cada cena é, então, decupada de acordo com as séries de pontos de vista. Não mais, como habitualmente, redistribuídos, mas dispostos desde o início, e variando apenas em sua repetição.

Hollywood? Ou certo cinema atual da Europa? Como um Jean-Daniel Pollet (da linha de Mediterranée, Bassae, Le Horla, Tu imagines Robinson, como da linha de Pourvu qu'on ait l'ivresse, Gala, Rue Saint-Denis, L'amour c'est gai, l'amour c'est triste), que retoma elementos definidos de longa data e trabalha apenas sobre suas variações.

A consciência clara. O Herói hollywoodiano é figura doente, marca de signos de uma ideologia que não lhes admite ideológicos, conduzindo cada vez mais o espectador para sua fraseologia. Recalque característica da escritura burguesa.

O Homem que Luta Só, como seu análogo, evita todo subentendido, toda significação escondida; se apresenta tematicamente, além disso, como uma agressão aberta contra todo recalque ("o esquecimento" de Frank, perseguido por Randolph Scott).

Uma interpretação liberada de todo psicologismo: nem mímicas, nem mensagens. Apenas as faces, os corpos, tudo que é mostrado. Os homens não são nada além de seres que caminham, comem, trocam, lutam, sem nenhuma transcendência, imanentes até o limite do insuportável, dissociados das premeditações dramáticas, dos eventos.

A consciência real desses homens, seus signos e seus atos são, sobretudo, constantemente anunciados, "telefonados". O diálogo formulando cada intenção, cada significação antecipadamente.

Essa figura, que rompeu a distância entre aparência e signo, é o embrião do personagem revolucionário. Ele diz, necessariamente, a ideologia que ele veicula (o que não significa que ele a anuncia claramente: esta seria a tarefa do filme conscientemente revolucionário). E, como por encantamento, ele escapa a toda classificação maniqueísta para constatar somente os planos econômicos (as trocas) e individuais (a vingança).

Narração três vezes mostrada. Assim, o personagem impõe uma ficção do tipo "mito de Édipo": seu "suspense" é constantemente despedaçado porquanto implacavelmente previsto. Não importa mais o que pode acontecer, mas o que o diretor vai fazer com as premonições do diálogo. Narração, então, aberta ao olhar.

Assim, as variações simultâneas que, para cada sequência, admitem seus ângulos do campo, forçam o espaço instituído da narração a se separar do desenvolvimento ficcional que funciona em trajeto.

E, dessa forma, a decupagem, enfim, pulsão lenta e regular, contenção tensa e estática, emerge tanto mais na medida em que se opõe às características tradicionais da ficção ("Western"): rapidez, ritmo, surpresa. Daí o desacordo entre uma narração imóvel e uma tradição de gênero, uma freando a outra que tenta se impor sem sucesso.

A ficção, por quê? Com Homem que Luta Só, Boetticher retomou pela enésima vez a mesma história. Instalada, já desde muito tempo, em uma estrutura temática, de filme a filme ele redispõe, para ali se perder, os deslizes, as vertigens agradáveis de uma visão imaginária. Ritual de representação que não se localiza mais apenas na tela, mas deriva do próprio funcionamento do autor.

Os livros, os filmes, desenvolvem em ficções metafóricas as dificuldades de suas elaborações, a solidão do papel branco; sua função: em primeiro lugar, permitir ao autor, por meio de um exorcismo perturbador em frente do espelho, de assumir por imagens interpostas as dimensões, em si mesmo, da obra.

Essas ficções de apoio iluminam o leitmotiv de Homem que Luta Só. Randolph Scott, ferido pelo passado, sozinho, satisfazendo esta lembrança através de uma curva – a vingança – exclusiva de todo desejo (repelindo, entre outros, a mulher, que claramente o atrai) responde à situação do diretor diante do filme a ser feito, do roteirista diante do roteiro a ser escrito. Ele solicita o cineasta a se sublimar em cada um de seus planos, o excita em abismo, a partir de suas próprias exigências.

As ficções de O Homem que Luta Só não reportam mais somente à própria narração; elas dizem, como por efeito de trampolim, sobre a produção. Elas são a aurora desse cinema insuportável, consciente até a incandescência, que anunciaria, simples e unicamente, sua economia.

- Sébastien Roulet, "Hors la loi". Cahiers du Cinéma, nº 211, abril de 1969 (Tradução minha, do original em francês). 

terça-feira, 15 de setembro de 2020

De Hawks a Blain













Scarface (Howard Hawks, 1932) / Jusqu'au bout de la nuit (Gérard Blain, 1995)

Pierre et Djemila (Gérard Blain, 1987)

Muita coisa para dizer sobre o Blain (a ponte possível entre Bresson e Brisseau?) e sobre Pierre et Djemila (que escapa a quase todas as definições). Há um aspecto, no entanto, a ser sublinhado: li que o filme sofreu duras críticas na ocasião de seu lançamento, pela sua associação (e do Michel Marmin) à nova direita e pelo trato da questão árabe. Esta recepção é curiosa, posto que “árabes” e “franceses” são todos dispostos em uma arena complexa de tensões sociais. A dimensão fulleriana do filme não decorre tanto dessa circunscrição de conflitos, mas da recusa por toda e qualquer generalização no contexto dessa arena: as palavras que Jean Narboni dedica a Fuller (“Individualista intransigente, obcecado pela contagem de um por um, criador de personagens – principais, secundários, e mesmo simples silhuetas – com relevo e singularidades inesquecíveis, ele se opõe ao maniqueísmo que lhe foi relegado há muito por sua reputação de primitivo pulsional”) poderiam ser ditas, de certa forma, sobre Blain e sobre este filme.

Em Pierre et Djemila, portanto, não se pode falar sobre “árabes”, como não se pode falar sobre “franceses”. Pode-se, por outro lado, falar sobre indivíduos e sobre a relação que estes mantêm ou são obrigados a manter com a religião ou com o Outro (cf. a mãe algeriana ou o pai francês). A máquina religiosa ou a mentalidade pequeno-burguesa, estas, sufocam o indivíduo e estreitam suas possibilidades, o que configura o próprio drama do filme, já que estamos diante de uma óbvia reatualização de Romeu e Julieta.

O que leva ao meu ponto central: se é verdade que o único assassinato do filme ocorre pelas mãos de um muçulmano convicto (o “outro lado”), também é certo que sua radicalidade é produto de uma sociedade francesa intolerante. Para Blain – cineasta da economia narrativa, da depuração, das elipses desconcertantes, dos gestos mínimos –, bastam dois planos, angulados de forma semelhante e dispostos em lugares diferentes na narrativa (porque o cineasta confia em seus espectadores para juntar as peças), para afirmá-lo sem meias-verdades: no primeiro, um menino muçulmano observa as consequências de um ataque francês à mesquita onde sua comunidade se reúne; no segundo, o assassino, após perpetuar o gesto derradeiro, se recolhe na mesma mesquita, agora arrumada, e se senta para rezar. Neste momento final, aquele menino que vimos antes se torna, retrospectivamente, a imagem da infância do muçulmano radical, que cresceu sob os mesmos ataques e a mesma intolerância.


Não surpreende, então, que o filme tenha sido recusado e simplesmente jogado às carcaças da nova direita. Na cartela inicial de Jusqu’au bout de la nuit, uma citação de Hölderlin postula a vocação da poesia em garantir um mínimo de insegurança à sociedade para que esta não “adormeça fatalmente”. Porque Pierre et Djemila suscita esta insegurança, demonstrando atenção às contradições sociais, denunciando dialeticamente a violência incessante cometida no interior de uma sociedade dita progressista – e embebida de falsas certezas –, provavelmente foi preciso rejeitá-lo, desvirtuá-lo, relegá-lo às classificações fáceis, para que a segurança das boas consciências pudesse ser restabelecida sem prejuízos.

No mais: obra-prima e possivelmente o melhor filme do Blain.

Jusqu'au bout de la nuit (Gérard Blain, 1995)

 

Curiosamente, um filme do mesmo ano de Heat, com o qual reserva algumas semelhanças. Jusqu'au bout de la nuit, aliás, poderia ser outro título para o filme do Mann. 

De Bresson a Blain

 

Mouchette (Robert Bresson, 1967)

Le Rebelle (Gérard Blain, 1980)

Pierre et Djemila (Gérard Blain, 1987)

sábado, 12 de setembro de 2020

Traviata 53

Vittorio Cottafavi ainda não deu o melhor de si, embora seja preciso rever Pecadora Marcada, talvez inteiramente admirável. Mas este filme abandonou nossas telas há mais de dois anos, nos impedindo de verificar um julgamento já antigo. Ali, uma mise en scène surpreendente se encontrava definida, preciosa e paroxística, sem dever nada a ninguém, sobretudo ao neo-realismo então triunfante. Um cinema de paixão, de torturas, de terror e de amor se inventava diante de nossos olhos maravilhados, em gestos raros, em olhares de pedra, gelo e metal, em silêncios ensurdecedores. Pudemos encontrar em seguida, principalmente em I Piombi di Venezia, e em menor medida em A Revolta dos Gladiadores e As Legiões de Cleópatra, apesar do interesse intermitente de seu autor por esses dois filmes, os mesmos reflexos de uma sensibilidade super aguda, em torno de certas jovens mulheres tratadas com a crueldade derradeira, flageladas, marcadas em ferro quente, devoradas por feras, esmagadas, mordidas por cobras, a tal ponto que não se poderia pensar em coincidências, pois o verdadeiro tema de todos esses filmes reside, de fato, no sofrimento da carne, sua angústia e sua morte. A cada plano, uma tragédia de ordem física se instaura, um mundo radiante se torna uma forca eriçada de espinhos onde a criatura pregada se debate, transida de horror. Mas a tragédia é entrecortada por momentos de felicidade, que antes deveria ser qualificada de alegria, ou mais fisicamente ainda como prazer, um prazer tão exacerbado quanto a dor que ele apaga, tão verdadeiro é o fato de que essa sensibilidade só existe quando suplicada ou exultante, em todo caso violentamente eletrizada. Eu conheço apenas nos filmes de Cottafavi esse aspecto ensolarado da fotografia, que determina uma crueza de pretos e brancos, estes quase calcificados, que se adequam perfeitamente às cenas em folhagens ou à beira da água. Crueza que indica também, na técnica do Cottafavi deste período, um amadorismo menos recomendável, mesmo que alguns de seus resultados nos encantem, já que não aderimos ao princípio em voga durante os últimos meses, segundo o qual uma câmera que treme necessariamente é genial, ou uma fotografia acinzentada de atualidade possui mais estilo que as iluminações precisas que proporcionam vida e brilho. Mas Cottafavi, dizíamos, inventa o cinema: é preciso perdoá-lo pela falta de jeito autodidata, preciosidades juvenis, enquadramentos desajeitados, decupagem por vezes emperrada - o motor tosse, mas dá partida novamente. 

(...)

É o único cineasta que explora sistematicamente a instalação da crise, ao invés de passar de uma vez à sua expressão instalada. Toda a atenção é fixada sobre a passagem entre a calmaria e a tempestade, segundo infinito no qual o ser é surpreendido em uma íntima transformação que o desapossa de sua liberdade e de sua consciência lúcida, o orienta totalmente na direção de um fim único e, por assim dizer, o mineraliza em sua paixão. É esta petrificação do ser que a câmera descobre, nos dando a mais vertiginosa sensação de violação de um segredo, de penetração em uma zona proibida, como aquilo que se pinta sobre a face de uma mulher no instante onde o prazer apodera-se dela e a carrega. 

Michel Mourlet - "Du côté de Racine" (Présence du Cinéma, nº 9, dezembro de 1961).