sábado, 11 de abril de 2020

O Medo Devora a Alma (Fassbinder, 1974)



As cores estonteantes, excessivas e simbólicas do filme de Sirk dão lugar à assepsia tonal de uma Alemanha ainda na sombra do pós-guerra, reduto de heranças hitleristas e de civis dispersos entre o nacionalismo racista e o jogo de interesses. A paisagem idílica no tableau final de Tudo que o Céu Permite (que para Fassbinder já estava longe de configurar um "happy end") é substituída, assim, pelo branco cadavérico de uma janela banhada por luz hospitalar.

Da parte de Fassbinder, este não é o único processo de radicalização de uma forma anterior. Também a câmera distanciada, situada à espreita dos batentes e das janelas, contrasta com a frontalidade e com o registro febril da câmera sirkiana (vide a morte na escadaria em Palavras ao Vento). Não se trata, nesse processo, de apenas vislumbrar as instâncias reguladoras do público e do privado – o que ocorre de forma clara nas cenas em que o vidro de uma fenestra se coloca entre a câmera e os personagens.

Na verdade, quando Fassbinder se debruça criticamente sobre essas instâncias, ele responde a um desejo mais amplo: a câmera se desaproxima para que se visualizem melhor as próprias estruturas narrativas que compõe o jogo melodramático – entre as quais se encontra, entre outras, a dialética social entre o público e o privado, os excessos e o mapeamento de moralidades. Inversão interessante ocorre na segunda metade do filme, quando a simplificação moral sirkiana (cá as vítimas, lá os algozes) cede espaço a sentimentos turvos e atos questionáveis por parte dos próprios protagonistas.

(Já os espelhos, estes continuam projetando mundos, sonhos e intimidades dilaceradas).


No filme de Sirk, quando Jane Wyman decide levar Rock Hudson para uma festa na casa dos moradores da vizinhança, os convidados curiosos transformam a festa em um verdadeiro circo de horrores e de aparências, sobretudo através das fofocas, dos olhares, dos preconceitos velados e até mesmo da briga que deste pandemônio resulta. Na cena em que Ali e Emmi sentam-se em um café na rua, por outro lado, eles são observados, sem cerimônias, por um grupo de escandalizados reunidos em frente do estabelecimento, petrificados e em silêncio.

Neste sentido, já não é mais necessária a ênfase no gesto ou na expressão dramática dos atores, traço característico dos melodramas hollywoodianos; aqui, o exagero está no lado inverso da moeda, ou seja, na ausência mesma desta ênfase. É o caso, também, da cena inicial, cuja imobilidade das personagens a tornam estátuas que respiram, evidenciando um entre tantos artifícios mediadores do melodrama. A úlcera no final não é menos absurda, em termos de deus ex-machina, do que o acidente de Rock Hudson no final de Tudo que o Céu Permite: a diferença é apenas de olhar.

O gênio de Fassbinder, entretanto, está em denunciar este mecanismo sem abdicar do senso de espetáculo e das emoções que o contornam.

Nenhum comentário:

Postar um comentário