quinta-feira, 16 de abril de 2020

Conta Comigo (Rob Reiner, 1986)


A julgar pela frontalidade do registro, pela economia formal, pelo arranjo dramático e sua dinâmica no interior do grupo masculino, pelo subtexto homossexual, pelo sentimento de fuga da civilização e pelo canto – este canto por vezes entoado em coro, por vezes nascido para se sobrepor à tristeza; esta celebração da “própria existência, na carne, aqui e agora, gritada de forma desafiadora nas mandíbulas da morte” (Robin Wood) –, poderíamos nos lembrar de Hawks. Assim, Jerry O’Connell acende um cigarro, traga-o como o tragaria um menino (ou seja: sem tragá-lo), e conclui de forma hawksiana: “nothing like a smoke after a meal”.

Mas se Hawks surge primeiro, Ford o acompanha logo depois: Conta Comigo não prolonga aquilo que vimos, pela perspectiva dos adultos, em No Tempo das Diligências? Em ambos os filmes, uma jornada iniciática que termina por revelar aos personagens os sentimentos – nunca dissociáveis da verdade – que eles próprios desconheciam de início. Nesta jornada, em que percurso acaba por se tornar mais importante do que a chegada, uma família improvisada é cristalizada entre os peregrinos, figuras marginalizadas do seio social ou familiar. No centro desta família, a doçura inexprimível do personagem que busca fugir das garras de uma sociedade que não lhe quer ver bem sucedido: River Phoenix, como o John Wayne de ontem, é vítima de seu nome e de seu passado, buscando a redenção por um crime cometido (ou injustamente forjado) sem abdicar da absoluta sensibilidade que só encontramos nos grandes seres humanos. “I just wish that I could go some place where nobody knows me”, é o que diz Phoenix, ecoando o personagem de Wayne. Quando Bill Wheaton, o protagonista, se despede do seu melhor amigo (“I’ll see ya”), este lhe responde como outrora um pistoleiro responderia (“Not if I see you first”). Em seu último plano no filme, Phoenix caminha em direção ao horizonte, despedindo-se daquele universo que não pode lhe pertencer, repetindo o gesto resoluto de Ethan Edwards em outro filme de Ford.

Por outro lado, e isto é fundamental, as jornadas de ambos os filmes são alicerçadas em território que, apesar de idílico, não esconde a ameaça e o desejo da morte: para além de uma analogia pobre que se poderia traçar entre os índios em No Tempo das Diligências e a gangue chefiada por Kiefer Shuterland em Conta Comigo, os personagens principais dos filmes têm consciência de que percorrer a extensão daquele determinado caminho significa encarar a morte de frente. Em Ford, John Wayne quer chegar à pequena Lordsburg para se vingar daqueles que mataram seu irmão, o que pode incorrer na perda de sua própria vida. Em Reiner, encarar a morte adquire um sentido literal e outro metafórico: encarar o corpo do menino atropelado pelo trem e, ao mesmo tempo, descobrir o peso que a Morte deposita sobre cada personagem. Assim, Wheaton confronta os fantasmas da morte de seu irmão e da ausência de seu pai; Phoenix vislumbra por alguns instantes a imputação que lhe querem impor; Feldman é assombrado pelos assassinatos da Normandia. Neste palco bucólico em que a luz do sol incide suavemente sobre as árvores e o azul do céu resplandece, o trilho do trem é retilíneo e indica que é tênue a linha que separa a vida da morte. “We’re going to see a dead kid, maybe it shouldn’t be a party...”.

O’Connell, o mais puro e ingênuo entre os garotos, parece sobrar. Não é o caso de procurar por sentidos profundos para sua presença no filme e sua função no grupo masculino, mas antes constatar que é exatamente sua inocência que é colocada em causa com a presença iminente da morte. Curiosamente, é ele quem propõe a ideia inicialmente e é ele o mais inclinado a sabotá-la durante o trajeto, ao ponto de ser o primeiro a fugir quando Shuterland e seu bando encurralam os garotos para apanhar o corpo. No jogo de duplos que o filme constantemente encena, O’Connell é a outra face de Feldman, o menino que um dia teve a orelha queimada no fogão e agora desafia trens em movimento. Phoenix, claro, é o par de Wheaton: o primeiro dando sentido aos medos e inseguranças do segundo, e este lhe estendendo suas esperanças irrefreáveis. Phoenix cumpre aquilo que o pai de Wheaton nunca cumpriu e que um dia competiu ao personagem de John Cusack: “Kids lose everything unless there’s someone there to look out for them, and if your parentes are too fucked up to do it, then maybe I should”. Wheaton, por sua vez, também preenche a lacuna aberta pelo pai e irmão de Phoenix, que apesar de vivos não poderiam estar mais mortos.

Sobre as escalas de flashback, cumpre perguntar: este recurso não foi utilizado pelo próprio Ford em Liberty Valance? Sem o mesmo caráter revelador, obviamente, mas com a mesma luz que o rasgo no manto do passado permite entrever. Que os flashbacks pertençam somente ao personagem principal, ao escritor que escreve a história, não deve surpreender. As cenas com John Cusack iluminam não somente o passado de onde “derivam”, mas também o presente. Da dificuldade de Wheaton de expor verbalmente os sentimentos turvos que lhe consumiam, ou seja, da dificuldade de formulá-los e organizá-los, o que lhe surgiam eram somente imagens de um passado irrecuperável: daí a incompreendida cena em que ele conta para seus amigos, em torno da fogueira (iconografia típica do western), a história do menino obeso que se vinga através de vômitos em cascata no festival da torta, porque aqui as ações (imagens) são organizadas por seu talento e contrastam com os fiapos de memória que insistem em surgir em seus pensamentos e sonhos. São destes restos de memória e das memórias vívidas que Richard Dreyfuss extrai a matéria-prima de seu livro quando em face da tela de seu computador. São elas também que permeiam o plano final do filme, quando somos nós que estamos em face da janela do escritório, por onde vemos o escritor se juntar às crianças e abandonar a imagem.

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