quarta-feira, 27 de abril de 2022

A última tentação do primeiro Rambo, por Serge Daney

"Uma vez que se tornou impossível separar um filme do fenômeno de massa que ele se tornou, uma vez que um herói de celulóide se tornou um emblema multiuso, é útil rever o filme na televisão, tal como, em si mesmo, a telinha o acolhe. Liberto de sua aura, ele se torna novamente aquilo que começou sendo: imagens e sons entre outras imagens e outros sons. Acontece até de ele não perder nada nessa reciclagem modesta. 


Sobrecarregados pelos avatares recentes, Rambo 2 e 3, ainda temos suficiente sangue frio para restituir a Rambo 1 (assinado por Ted Kotcheff) suas qualidades iniciais. Como John Rambo, herói do Vietnã, se tornou fera enraivecida é a questão do filme. Como Rambo – o filme – se degenerou em “sequências” cada vez mais idiotas é a mesma questão. Como já não é mais possível, certamente, continuar o que foi começado é ainda a mesma questão, colocada desta vez ao cinema como um todo. Ela vale tanto para Rambo quanto para Rocky, ou seja, para Stallone, que foi grande e depois grotesco em ambos. Explorar um filão de filmes, hoje, equivale a traí-lo na primeira oportunidade. Antes de ser um bruto vingativo, Rambo foi um animal caçado em estado de legítima defesa. Rambo, na verdade, não existe, e se ele começa sendo tão doce, tão sensível, é porque, na época (1983), a América não havia se reconciliado totalmente com sua guerra, e porque Jane Fonda ainda não havia se desculpado aos veteranos. Quando a América pôs fim ao seu luto vietnamita, Rambo ganhou em bíceps o que ele perdeu, de forma definitiva, em neurônios. A série não possui lógica própria: ele é uma pesquisa de opinião “em progresso”. 


Isso não impede que o televisionamento do primeiro Rambo seja uma das coisas mais agradáveis que existem. Tudo é claro nesse filme que tem as qualidades do cinema primitivo americano, dispondo a ação no centro da imagem e as motivações no centro dos diálogos. Tudo é claro porque a única coisa não-tão-clara (a guerra do Vietnã, ainda recente) só é evocada no final do filme, quando Rambo, em lágrimas, se entrega. Nesse meio tempo, tudo acontece sob forma de trauma, como a “atuação” demasiado criticada do ator Sylvester Stallone. 


Rambo não é somente um filme sobre alguém que quase perdeu o poder da palavra: ele é, mais profundamente, um filme mudo. Mudo sobre as grandes questões das quais ele retarda ao máximo a formulação. Mudo sobre as causas recalcadas e os fins últimos, mudo diante da violência e da natureza. É preciso saber reconhecer Stallone por ter reinventado, para este filme, uma dramaturgia do olho franco e do olhar-semáforo. Isso faz com que ele pareça com os atores dos primeiros faroestes, absolutamente silenciosos, traumatizados por quase nada e se agitando na natureza hostil. 


Se Rambo fosse um faroeste, Rambo seria um Indígena. Não o Indígena dominado que vemos nos filmes de DeMille, mas o Indígena em cólera que voltou para desafiar seus ex-dominadores que o Vietnã dominou. Essa passagem pelo faroeste é a melhor parte do filme, e a mais significativa também. Rambo não precisa de roteiro porque Rambo é seu roteiro, isto é, sua memória. Memória recente do trauma vietnamita, memória antiga do genocídio indígena, memória pura e simples do povo americano na medida em que ele não deve esquecer que ele também é um povo guerreiro. No contato (um pouco rude) com Rambo, e graças à guerra que ele lhes declara por si mesmo, as “forças da ordem” de uma cidade pequena dos Estados Unidos reaprendrem a lutar. É o sacrifício de Rambo: sua dimensão crística. A ele o calvário, aos outros a tomada de consciência. Nesse sentido, Rambo é um verdadeiro Cristo e sua “última tentação” (essa de ser apenas um homem como os outros) coincide com o “primeiro sangue” (aquele que, por pura crueldade, fizeram-lhe sangrar). Aí está alguém que, pelo menos, salva o mundo, em vez de viver, como seu futuro irmão pequeno scorseseano, os tormentos esnobes do individualismo contemporâneo. 


É exatamente por isso que tanta gente se identificou com seu corpo de fisiculturista masoquista. Todos aqueles para quem o individualismo ainda é um luxo se reconhecem nos heróis salvadores, e eles nunca são especialmente atentos quanto à natureza última do que é salvo. Pois esses heróis demasiado sérios que os fazem rir acabam por salvá-los de pelo menos uma coisa: do tédio".


(Publicado em Devant la recrudescence des vols de sac à main. Tradução: Luiz Fernando Coutinho).

quarta-feira, 3 de março de 2021

Nomadland

1. Nomadland é um filme de lampejos de beleza singela, nascidos dos encontros fugazes com atores e atrizes não profissionais que se abrem para a experiência do filme. Por outro lado, estes encontros são constantemente constrangidos pelos tiques e efeitos malickianos que a Chloé Zhao assimila da pior forma possível - câmera "fluida" que perscruta os personagens em contra-plongée, contra a luz, como que buscando uma pseutranscendência de caráter duvidoso. A cena em que a personagem da McDormand - sempre excepcional - passeia pela floresta de sequoias e se detém sobre aquela tombada é especialmente vergonhosa, exemplo de metáfora pobre para uma condição humana amplamente mais complexa.

2. Como se tentasse transubstanciar o nomadismo da personagem para a forma do filme, a montagem - da própria Zhao - opera cortes abruptos de uma cena a outra, e no interior de uma mesma cena. Um confronto nem sempre benéfico se esboça diante de nós: enquanto o percurso da montagem é itinerante, descontínuo e opaco, outros elementos (trilha sobretudo) progridem rumo à identificação de nosso olhar com o universo representado. O corte seco e a fragmentação colidem com as notas musicais regadas a emoções inexistentes, numa atmosfera de romantismo alienante cuja platitude do olhar não diferencia um deserto crepuscular de uma filial da Amazon.

3. Porque nem tudo é espinho: um dos planos finais do filme, sem dúvidas consciente da referência a The Searchers, efetua uma ressignificação fascinante. Onde a câmera de Ford se prostrava no interior da casa para que a porta se fechasse diante de nós e o personagem de John Wayne selasse seu caminhar do outro lado, em Nomadland a câmera descreve um movimento em direção à porta e encontra enfim a paisagem vasta que se estende para além dos batentes. Ethan Edwards não pertencia, não poderia pertencer, ao universo doméstico de The Searchers, como também Fern, em outra chave, não pertence aos modelos estabelecidos de sociedade: seu lugar será sempre este "outro lado" cuja imensidão se torna a medida de sua morada. Se há algum interesse neste filme, ele se encontra no diálogo com a tradição do Oeste americano. "Os nômades de hoje são os pioneiros de ontem", diz uma das personagens em certa altura. A este movimento de câmera podemos dar o nome de liberdade. 








sábado, 6 de fevereiro de 2021

O Altar dos Vivos, por Jean-Marie Samocki

"He had done many things in the world - he had done almost but one: he had never, never forgotten" (Henry James, The Altar of the Dead)

"She would sleep, she would wake, she would walk and she would forget" (A Maldição da Mansão Bly, episódio 8

"A sequência parece insignificante, mas ela tem seu segredo. Ela se encontra em Doutor Sono (2019), a adaptação por Mike Flanagan do romance que Stephen King escreveu 35 anos depois de O Iluminado e que narra o destino de Danny Torrance, o menino encurralado pelos fantasmas do hotel Overlook. Dois espectadores assistem a um jogo de baseball. À primeira vista, trata-se só de um plano de cobertura que introduz um novo lugar: o estádio onde joga o adolescente que será atrozmente assassinado. Flanagan, que monta ele próprio seus filmes, desacelera a ação, seguindo nisto King, antes de expor o acontecimento horrífico. Por que esse plano? O espectador com barbicha é Danny Lloyd, o garoto que aos seis anos interpretava Danny na adaptação de O Iluminado por Stanley Kubrick. Isto poderia ter sido um cameo a mais, uma homenagem entre outras, mas ninguém conhece o rosto de Lloyd, que quase nunca falou de sua experiência de criança. É uma confissão e uma assinatura. 

As crianças secretas 

Cada filme de Flanagan desperta uma criança escondida no corpo de um adulto. O que ele faz de Danny Lloyd no tempo de um plano breve, ele alarga e aprofunda com Henry Thomas. Este ator aparece em seus filmes e séries desde 2016: padre exorcista em Ouija: Origem do Mal (2016), pai incestuoso em Jogo Perigoso (2017), pai jovem em A Maldição da Residência Hill (2018), tio protetor em A Maldição da Mansão Bly (2020). É ele também que, em Doutor Sono, retoma o papel icônico de Jack Nicholson: Jack Torrance, o pai de Danny. Por que tanto lhe propor papéis de pai atormentado? Será porque era ele o menino de E.T., ao lado de Drew Barrymore? Fazendo-lhe endossar todas as figuras paternais, Flanagan cria uma genealogia imaginária que liga uma criança inocente que quer acompanhar um extraterrestre até sua casa a pais feridos, confusamente à procura de uma condenação ou de uma absolvição. Também com atrizes em papéis recorrentes (Carla Gugino, Victoria Pedretti, e, sobretudo, Kate Siegel, com quem ele é casado), ele inventa uma família que, de filme a filme, por efeitos de semelhança e de identificação, refaz o mesmo caminho em direção à rememoração, sempre com aquela questão lancinante: o que aconteceu entre ontem e hoje? Aconteceu realmente alguma coisa? 

O desmembramento entre o tempo presente e uma época traumática é uma constante. Quando o irmão e a irmã de O Espelho (2013) retornam à mansão familiar onde seu pai se matou, eles se desdobram de um plano ao seguinte, passando sem cessar de um estrato de tempo a outro, intercambiando seus corpos de 20 anos com sua aparência de criança. Em A Maldição da Mansão Bly, seus corpos permanecem, por outro lado, idênticos a eles mesmos. Mas o tempo não passa mais: os raccords, contra a linearidade cronológica, exploram uma profundidade de passado que escapa mesmo ao personagem, preso nos limbos da narrativa, em fragmentos de memória que servem apenas para desembocar sobre um único momento – a consciência de sua própria morte. 

Os mortos que se ignoram coabitam com os vivos que sofrem sem fim. Os personagens, para citar um comentador de Henry James, o filósofo David Lapoujade, são 'refletores', 'consciências'Ninguém se dá conta do que eles experimentam, e nem mesmo eles. Ninguém se dá conta de que eles já estão mortos, e nem mesmo eles. É a revelação desconcertante do final do quinto episódio de A Maldição da Residência Hill, quando vemos enfim o rosto da moça do pescoço torto. Como decidir entre os fantasmas e os vivos de Bly Manor? Esse projeto está em curso desde Absentia (2011), o primeiro filme fantástico de Mike Flanagan, e mais precisamente desde seu último plano: o fantasma de uma mulher vê um homem partir à sua procura. Depois de o espectador ser mantido durante todo o filme com os vivos, o último plano muda a perspectiva. Flanagan sistematiza circulações de um plano a outro, contracampos impossíveis graças aos quais um personagem pode dialogar com aquele que ele ou ela era dezenas de anos atrás. Seus diferentes 'eu' acolhem seus diferentes mortos. As personae se difratam e se dividem sem fim. 

Altar Overlook [1] 

Multiplicando as variações de pontos de vista, Flanagan modifica deliberadamente o que pudéramos reter das novelas de Henry James. A crueldade é mais rara, as relações de predação não são mais a lei desse mundo, a espera metafísica desaparece em função de uma esperança mais sentimental. E sobretudo: os mortos, aqui, se recordam dos vivos, encarregam-se deles, habitam seu mundo, não por consolação mas para fornecer um porvir a sua solidão. Seus espectros possuem sempre a mesma face. De Absentia ao oitavo episódio de A Maldição da Mansão Bly, os traços são apagados, a boca é apenas um largo buraco, são sentinelas que se recordam, mas pouco a pouco o esquecimento vem, lhes desapossando de sua cólera e borrando sua forma. Também os screamers e os jump scares são frequentemente ineficazes. Seus fantasmas pertencem ao melodrama. Sob o risco de forçar a barra, mesmo esse filme de encomenda para adolescentes que é Ouija: Origem do Mal está mais próximo de O Fantasma Apaixonado do que de O Exorcista. Eles não têm mais raiva. Há somente tristeza. Ninguém se move, todo mundo volta. 

É o paradoxo de suas ficções: dar a impressão de nunca sair de uma casa e pensar somente em ali regressar. A romancista surda de Hush: A Morte Ouve (2016) é presa em sua residência por um psicopata, e quando ela sai de sua casa-armadilha, ela quer o quanto antes voltar porque esta é seu único abrigo. Dani, a jovem au pair de A Maldição da Mansão Bly, toma todo um episódio (o ultimo) para compreender que, uma vez que ela abandonou a mansão, sua vida se resume a possuir a força para ali retornar. Um outro Danny, Torrance, para se salvar das forças do mal, decide retornar ao hotel Overlook. Danny ou Dani, é a mesma história: como voltar ao hotel ou a mansão, como poder filmar de novo o lugar onde tudo começou. 

De O Iluminado a Doutor Sono, há menos uma relação de referência que de assombração, a qual ultrapassa o filme. Quando Flanagan filma banheiros e banheiras (o que é frequente em seus filmes desde O Sono da Morte, em 2016), a cada vez ele faz eco ao quarto 237 e à mulher nua que, tão logo a abraçamos, se transforma em feiticeira coberta de escaras. Ela é o alfa e o ômega de Doutor Sono. Danny ali se fecha no início tal como seu duplo feminino, Abra, ali se fechará também no final, em sinal de transmissão como de fidelidade a seus pesadelos pessoais. Mas, logo na sequência de abertura, ele retoma a profundidade de campo da aparição das irmãs gêmeas, a qual ele transpõe ao espaço de um bosque. Ele retoma até mesmo o escritório onde o diretor do hotel recebe Jack para a cena onde o diretor da casa de repouso acolhe Danny. Todos os signos do filme são disseminados, dando a emoção de revisitá-lo como uma antiga casa, vigiando-lhe as mudanças da adaptação, os sentimentos do passado. Diríamos, pensando em Edgar Poe, que a mise en scène se torna uma filosofia de mobiliário.

Medimos a diferença com Steven Spielberg, que, em Jogador Nº 1, também rendeu homenagem à potência inaugural de O Iluminado, fazendo do hotel o lugar de um videogame. Spielberg se dirige àqueles que não conhecem o filme, ritualizando-o como uma matéria imersiva em três dimensões. Flanagan se dirige mais àqueles que o conhecem de cor, como se eles tivessem nascido com e por ele. Isto explica talvez o fracasso comercial do filme e o que ele faz pela Netflix: narrativas endereçadas a jovens adultos que sem dúvida nunca leram Henry James, e do qual ele conserva uma trama, um nome, uma situação, até que se dê a vontade de descobrir a cultura clássica – o que simboliza um episódio em preto e branco e sustentado essencialmente por uma voz off ou os trechos de filmes vistos em um aparelho de televisão, como senhas ou signos clandestinos, de Ladrão de Casaca de Alfred Hitchcock a Sabrina de Billy Wilder. 

O quarto vermelho 

A relação com Spielberg não é, entretanto, fortuita, e o final de um de seus filmes parece fornecer o valor do cinema de Flanagan, com suas ambições e seus limites atuais. Trata-se de A.I – Inteligência Artificial. Ao término de uma odisseia que desafia o tempo, o jovem David pode encontrar sua mãe, o tempo de um dia, e afundar-se na ilusão de um amor eterno. Este final é um ponto de chegada. Stéphane Delorme havia comentado: 'David espera sua imagem matricial (a silhueta com os braços estendidos), Spielberg também, que parece esperar a fantasia de seu cinema (uma criança boa com sua mãe) denunciando-lhe a utopia' (Cahiers nº 563). O sonho de Flanagan seria, pelo contrário, estender essa fantasia às dimensões da série contemporânea, multiplicando à exaustão as recorrências das imagens matriciais, fazendo delas um começo inexaurível. Os sentimentos encontram um laboratório onde as cenas traumáticas podem ser revividas para serem aceitas, superadas, reconstruídas, parodiadas, imitadas, deslocadas – e finalmente domesticadas. Trata-se obsessivamente de amar, de perder, de morrer e de se pôr de volta a amar. Há dois riscos: o quarto frio, onde os sentimentos dão vida a cadáveres em suspensão (uma das irmãs de A Maldição da Residência Hill restaura o rosto dos defuntos), e o 'quarto verde', aquele de Truffaut adaptando O Altar dos Mortos, onde os vivos velam os mortos sem saber que é o inverso que é verdadeiro. 

Haveria um terceiro quarto: o quarto vermelho, fazendo eco a David Lynch. As aparições em Jogo Perigoso e em Doutor Sono de Carel Struycken, o famoso gigante que assombra os sonhos do agente Cooper de Twin Peaks, assim como aquela do doutor Jacoby para interpretar o psiquiatra de A Maldição da Residência Hill, são indícios. O que parece buscar Flanagan, cada vez mais, é uma desmedida órfica, a necessidade de se perder nos labirintos do sentimento em nome da aspiração a um retorno, a uma libertação: passar do abandono do outro ao abandono de si. No entanto, os últimos planos de A Maldição da Mansão Bly vão nesta direção, aliando uma forma de puerilidade a uma mitologia que não é ainda violada. Uma mulher mergulha para salvar outra, sua mão se estica, mas a mulher viva não pode apagar a morte. É preciso projetar-se no futuro para ver como esse abraço impossível criou a espera do fantasma e a fantasia do retorno. A mulher viva busca a morte nos reflexos de sua banheira, ela deixa a porta aberta. Mesmo que ela narre suas fantasias, o espectador ainda vê uma criança, sozinha com ela mesma". 

Jean-Marie Samocki, Cahiers du Cinéma, nº 772, janeiro de 2021. 

[1] Em francês, autel (altar) e hôtel (hotel) são palavras parônimas, ou seja, são pronunciadas de forma semelhante. No original, o autor faz um jogo de palavras: Overlook Autel [N. do. T].

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

"Justiça para James Bond", por Nicolas Saada

"É um fato conhecido: a política dos autores ganhou, para o pior e o melhor. Não há uma fanzine, um hebdomadário, uma coluna de cinema na televisão que não fale no 'último filme de'... Em trinta anos, raros são os cineastas que puderam escapar dela: os filmes são sempre reduzidos ao indivíduo atrás da câmera. 

Nunca ocorreria a alguém evocar a série James Bond citando os nomes de seus diretores. É difícil imaginar um cinéfilo com raiva de um amigo por causa de John Glen, Lewis Gilbert ou Peter Hunt. Dizemos 'um James Bond', espécie de termo genérico que engloba toda a série desde a sua criação. 

Os primeiros James Bond foram finalmente lançados na França em DVD, numa ordem quase cronológica, após os lançamentos de 007 - O Amanhã Nunca Morre e 007 contra GoldenEye no ano passado. Está aí a ocasião para se tentar compreender como os filmes a priori mais impessoais da história do cinema são certamente muito mais interessantes e fascinantes do que se imaginava.  

François Truffaut via nos James Bond uma frágil paródia dos filmes de Hitchcock e de Intriga Internacional, exprimindo assim seu desprezo pela série. Fellini, por outro lado, nunca escondeu sua paixão pelos James Bond, e até acarinhava a fantasia de realizar um. Cada DVD é acompanhado de um documentário explicando a gênese e a produção dos filmes. Sentimos que por trás de toda essa empreitada esconde-se muito mais que um punhado de groupies: trata-se antes de apaixonados pelo assunto, que redescobriram arquivos, trechos de entrevistas e esboços. 

007 contra o Satânico Dr. No e Moscou contra 007, filmados um após o outro entre 1962 e 1963, se distinguem, em primeiro lugar, pelo toque não negligenciável de seu diretor, Terence Young. Ele inventa o estilo James Bond, com seu ritmo nervoso e a montagem truncada de Peter Hunt, mestre no assunto. Dr. No, filmado sob as condições de uma verdadeira Série B, é uma mistura bizarra de filmes de aventura e de ficção científica, sem gadgets, mas com a direção artística de Ken Adam, que impressionou Kubrick ao ponto de este contratá-lo para Dr. Fantástico. Moscou contra 007 é um verdadeiro filme de espionagem, inspirado em Five Fingers de Mankiewicz, citado inúmeras vezes. Nele encontramos Lotte Lenya como uma espiã sádica. É uma joia de invenção gráfica e de escárnio. 

Os James Bond não são simples filmes ingleses (certamente uma razão para que Truffaut os detestasse). Eles podem ser comparados ao que chamamos, em arquitetura, de 'estilo internacional': uma moda cujas raízes remontam à Bauhaus alemã. Ken Adam, que desenhou inúmeros cenários dos James Bond, tinha origem alemã e isto, sem dúvida, explica aquilo. Se os filmes de James Bond são tão desprezados - o que é totalmente injusto -, é porque eles nunca exprimem um sentido 'secreto' da mise en scène ou o ponto de vista de um autor sufocado pelas regras de um gênero. Foi por pleno conhecimento de causa que os diretores dos James Bond se inseriram na série, assim como Sean Connery também se inseriu nela com os figurinos sob medida do alfaiate Turnbull & Asser. Terence Young concebeu visualmente o herói internacional. E foi ele quem inventou o que hoje chamamos de filme de ação. 

Os DVDs de James Bond reproduzem maravilhosamente o clima insólito dos primeiros Bond, com suas cores selvagens e seu formalismo devastador. Deste lote de relançamentos emerge Goldfinger de Guy Hamilton, que assinou outros James Bond - nenhum, no entanto, atinge a loucura e a invenção daquele. Por quê? Robert Bresson qualificava Goldfinger como 'notável', para a surpresa de muitos, que viam por parte do mestre uma brincadeira ou uma provocação (ou os dois). Bresson, o Cineasta, observava um mundo vasto e secreto se agitar. Goldfinger é o inverso de Bresson: uma máquina anônima, sem identidade, que produz um número espantoso de ideias de cinema, sem efeito de assinatura, sem a sombra de uma 'personalidade' no comando. Goldfinger é uma obra-prima pura. Um perturbador trabalho coletivo onde a noção de filme de autor desaparece em benefício de um 'filme autor'. O documentário que acompanha o filme, comentado por Patrick McNee (Steed, John Steed), leva em consideração esta ideia. Ele fala de um trabalho de equipe a serviço de uma máquina sutil, o James Bond, programa rodado, sem piloto, mas com uma equipe brilhante, uma conjunção de talentos únicos em seus gêneros: Ken Adam, Peter Hunt, Guy Hamilton, John Barry. 

Com o declínio dos anos 70, James Bond conhece um último sobressalto em 1969 com 007 - A Serviço Secreto de sua Majestade: é o único filme da série que não é um programa. Dirigido por Peter Hunt, ele explora o personagem sob um ângulo inédito. O filme reúne o elenco mais belo de todos: Diana Rigg como Bond Girl, Gabrielle Ferzetti recém saído de Antonioni, e Georges Lazenby. É um James Bond em que pela primeira vez se passa algo de pessoal, de singular. Ele é estruturado de maneira relaxada, quase desordenada, como sob influência perniciosa do cinema moderno. No DVD, seu diretor comenta a cena de abertura com um tom casual ('Oh, it's charming', ele repete). Como se ele não fosse consciente nem por um segundo da beleza macabra do mais bem sucedido filme de James Bond.  

É este jogo entre o vazio absoluto e a graça desconcertante que faz dos filmes de James Bond uma experiência jubilatória. O DVD faz então justiça aos melhores James Bond, singulares e magníficos objetos, filmes anônimos onde a mise en scène se exprime a despeito do espetáculo, em doçura, mas não em contrabando". 

Nicolas Saada, Cahiers du cinéma nº 550, outubro de 2000. 

domingo, 6 de dezembro de 2020

Tenet, por Jean-Baptiste Thoret

"Contrariamente ao que se escreve/diz por aí, a história de Tenet é extremamente simples, e mesmo simplista: a fim de evitar uma terceira guerra mundial, um agente secreto segue as pegadas de um russo malvado que detém consigo qualquer coisa como plutônio. Depois, ele se apaixona pela mulher deste último. Juntos, e na companhia de outros personagens coadjuvantes, eles percorrem o mundo para evitar que o desastre aconteça. É pouco, mas é tudo. No lado dos atores, o bad guy é interpretado por Kenneth Brannagh (que reassume o papel que ele possuía em Operação Sombra - Jack Ryan), sua mulher, pela surpreendente Elizabeth Debicki (mesma coisa: ela é Thandie Newton em M:I 2) e o herói sem nome por John David Washington, um ator novo que prova que o carisma não é genético. No lado dos cenários, o escapismo frenético do filme nos impede de explorar realmente qualquer um deles. O filme, então, é uma catástrofe jamesbonderiana tal como Hollywood produziu e ainda produz em grande quantidade, na verdade mais próxima da série ultra B (menos a modéstia e o charme) do que desse blockbuster de autor que, ao que parece, vai salvar o cinema. Além disso, ao final das 2h40, estamos mais certos de querer salvá-lo. O roteiro naturalmente trabalha no sentido inverso de sua história frágil. Trata-se de fazer acreditar que o filme é muito mais inteligente do que parece, agitando por todo lado trapos custosos que, este é o objetivo, farão esquecer que no fundo da cartola não há o menor traço de coelho. Nolan e seu roteirista, o mesmo Nolan, embaralham as cartas a partir de um princípio bobo: tudo que é simples, na verdade, é muito complicado. E o inverso: é isto que desencadeará a febre hermenêutica de certos espectadores convencidos que o camundongo, quando autopsiado em detalhes, era na verdade um boi. A famosa síndrome do pião. É necessário, então, preencher ou mascarar o vazio à maneira daqueles fumígenos que, nos filmes de ficção científica barata dos anos 50 e 60, recobriam com uma aura misteriosa os rochedos e as criaturinhas de papelão. É necessário esticar as sequências em todas as direções, mostrá-las duas vezes (mesmo as piores: a luta interminável entre o herói e seu duplo de capacete nos corredores de um hangar) e disseminar, por toda parte, pequenos grãos para serem bicados (o espelho quebrado de um retrovisor!) e que farão a alegria de geeks e de pombos. Estratégia que Nolan já havia empregado em Inception: quando um filme não pensa nada, é preciso produzir a ilusão de que ele pensa em tudo. Como fazer: mergulhar essa pequena história em um jargão científico muito sério, fazer com que os atores, que não tem mais nada para interpretar, recitem diálogos alucinantes com uma seriedade papal, emaranhar o todo em paradoxos temporais e em pequenos quebra-cabeças lógicos dignos daqueles que encontramos na seção de adolescentes da Nature et Découverts (se é que isso ainda existe). Tudo isso não torna o filme menos acessível, pelo contrário, mas abre-o para uma indiferença que, neste caso, nos deixa tempo para refletir sobre aquilo que vemos realmente. Porque se Nolan parece se divertir bastante na companhia de seus brinquedos, para nós ele não alcança nada. Mesmo musculoso, seu paquiderme permanece um fracote tolo. A operação de esfumaçamento até se volta contra o filme, à medida que este avança, tanto Nolan se mostra incapaz de articular seus pequenos dispositivos científicos a uma visão de conjunto, a afetos ou a personagens reduzidos aqui à autômatos minados. Como para as crianças, o mundo de Tenet termina nos limites do parquinho de seu autor. Afinal, as histórias simples nunca impediram os bons filmes, nem o jogo sobre o tempo - sobre um tema similar, Déjà Vu de Tony Scott (que Nolan teve de estudar atentamente) e o formidável Odisseia para Além do Sol de Robert Parrish (1968) esmagam Tenet. Ainda é preciso ter algo a dizer, uma emoção a fazer sentir, eventualmente uma ideia. Não sejamos ingênuos: Nolan permanece fechado em si mesmo. O filme é veloz mas é interminável. E é seu paradoxo mais saboroso: ele brinca sobre e com o tempo mas não sabe como lidar com ele (o que poderia ter sido um belo tema). Ele o despacha. Tudo já está aí, desfila, nada existe realmente. Mas onde o filme surpreende, e talvez mais decepcione, é em sua incapacidade de manter sequências bastante simples (as conversas decupadas com uma colher de pedreiro: uma réplica/um plano), de dispor um cenário no espaço, de fabricar uma sequência de ação sólida - o filme prova, mais uma vez, o quanto o cinema de ação é um gênero exigente que requer inventividade e precisão. Imaginemos somente a sequência da autoestrada realizada por McTiernan, J. Cameron, as Wachowski ou G. Miller. Sem dúvida, Nolan só tinha em sua bolsa um único truque, que ele utilza ad nauseam: mostrar o efeito antes da causa, filmar uma bala que retorna para seu tambor, um carro que se põe novamente em pé, um prédio que se reconstrói, etc... É pobre, mas why not? Ora, mesmo esse pequeno dispositivo não funciona. Nem o prazer do olho. Por que? Hipótese: o princípio do suspense, sobre o qual o filme, apesar de tudo, se baseia, repousa precisamente no gozo da expectativa ansiosa por um efeito do qual conhecemos a causa. Ora, invertendo a causa e o efeito, o filme desativa o próprio mecanismo à partir do qual ele quer avançar. A refletir, talvez, pelo lado do burlesco". 

- Jean-Baptiste Thoret, em post no seu facebook. 

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Serge Daney sobre Shadi Abdel Salam

"Em 1979, um filme é lançado no Cairo. Título A Múmia. Lançamento desleixado, público raro. O filme está há dez anos nas caixas. Ele dará a volta ao mundo, mesmo que discretamente. Nós o veremos em Paris. Ficaremos boquiabertos. Aprenderemos a pronunciar o nome de seu autor, Shadi Abdessalam, e a pensar que além do polo Chahine e do polo Abou Seif, há no cinema egípcio o polo Abdessalam. Esperaremos outros filmes dele. Nenhum longa virá. Alguns terão a oportunidade de ver dois curtas-metragens: O Camponês Eloquente (1970) e Les Armées du Soleil (1974). Ambos suntuosos. Pois aplicada a Abdessalam, a palavra 'esteta' é fraca, quase vulgar. O gosto pela beleza acompanhou o homem por toda sua vida (envolto em sua capa, ele era majestoso). Não uma beleza sobreposta, excedente, mas o que era belo, desde sempre, no Egito. Desde sempre, isto é, faraós inclusos. Shadi Abdessalam foi único nisso: ele filma um Egito que não começa com o Egito, e seu Camponês eloquente que vem pedir justiça para o faraó é irmão dos soldados da guerra de 73 ou de Wannis, o herói desamparado de A Múmia

Nascido em 9 de março de 1930 em Alexandria, após estudar em Oxford, Shadi Abdessalam passa pelo Instituto de Belas Artes do Cairo, de onde ele sai em 1955, diplomado em arquitetura. Ele opta pelo cinema, é assistente em quatro filmes antes de se ver contratado pela Fox como assistente de cenografia em Cleópatra de Mankiewicz (1963). Da mesma forma, quando o polonês Kawalerowicz filma seu Faraó (1966) ou quando o italiano Roberto Rossellini supervisiona La lutte de l'homme pour sa survie (1967): Abdessalam é o homem por quem a reconstituição histórica passa. Tanto que, quando ele passa por sua vez para trás das câmeras, ele tem, além de sua cultura pessoal, uma ideia de estado internacional (e não somente egípcio) do cinema. 

A Múmia, seu único longa-metragem, se chama também A Noite em que Contamos os Anos. Em 1881, a pilhagem de tumbas se tornou um crime. Certas tribos - como a dos Horabat de Tebas - viviam por muito tempo desses saques, possuindo o conhecimento secreto de um Esconderijo real. Um jovem homem herda esse segredo e compreende confusamente que os tempos estão mudando e que ele deve revelá-lo. Não há dúvida de que se ele houvesse filmado mais, Abdessalam teria retornado a essa arqueologia, essa gênese do 'homo egyptianus'. Único egiptólogo do cinema egípcio, ele sabia, no menor detalhe, do quê ele estava falando. A beleza de A Múmia vem, para nós, desse sentimento de que tudo foi escolhido, pesado e amado - depois filmado, inelutavelmente. 

A partir de 1968, Shadi Abdessalam lecionou no Centro de cinema experimental do Cairo. Então sua vida se confundiu com uma ideia fixa: Akhenaton. O projeto se tornou decididamente mítico. Megalomaníaco demais, caro demais, intempestivo demais na paisagem mais uma vez demasiado provincial do cinema egípcio? Talvez. Ouvíamos que o cineasta já havia tudo desenhado, previsto, modelado, ao ponto de o filme, em certo sentido, já ter sido feito, transformado em museu antes de ter sido película. 

A doença (que terminou por tirar-lhe a vida) tornava a ressurreição do faraó monoteísta ainda mais improvável. Nas filmagens de Adieu Bonaparte, almas vigilantes sussurraram a Jack Lang que existia um outro projeto egípcio, soberbo e louco. Era sem dúvida tarde demais". 

- Libération, outubro de 1986. Tradução minha. 

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

"Leone na guerra", por Serge Daney

"Se, como a percepção, o filme é uma alucinação verdadeira, certos filmes são verdadeiras alucinações. Resta deles – persistente – uma imagem, apenas uma. Ou um ritornello, assinado por Morricone. Todo mundo os viu, pensa que os viu ou acredita que todo mundo os tivesse visto. Eles não se distinguem mais do impacto que eles tiveram, da paisagem que eles abriram ou dos clones que lhes deram continuidade. Tanto é que quando cruzamos com eles na tela pequena ficamos perplexos ao redescobrir aquele estado de frescor que eles – e nós também – tinham em seu nascimento. É o caso, por exemplo, dos três primeiros faroestes de Sergio Leone (chamados “spaghettis” sem dúvida porque seu autor, no fundo, é feito da boa massa com a qual se faziam os humanistas) e de Três Homens em Conflito, que o canal France 3 exibiu na segunda à noite.

O filme começa pelo que terminou por restar dele, por este exibicionismo de entradas no campo e na ação, comparável (tanto o dizemos que é um clichê) às grandes árias das óperas veristas. Três atores pertencentes a três mundos do cinema (Wallach vem principalmente de Kazan, Van Cleef foi coadjuvante em Ford, Eastwood ainda não é Eastwood) se entregam à jubilação de três recitativos e se preparam lentamente para disputar entre si um tesouro perdido de duzentos mil dólares. Tudo passa por seus olhos (mais do que pelas suas interpretações), olhos que estão lá mais para serem vistos do que para ver. Franzidos, odiosos ou redondos, esses órgãos da visão não impedem seus detentores de desperceber a única realidade da época: a guerra civil (chamada, em nosso país, 'de Secessão').

Pois é aí que a revisão na TV de Três Homens em Conflito se revela uma experiência fascinante. O verdadeiro filme não se assemelha à lembrança que ele havia deixado. Não há três personagens, mas quatro, e se é preciso quarenta minutos para introduzir os primeiros, é preciso ainda mais para permitir ao quarto – a guerra – deslizar sobre o quadro e pesar sobre ele cada vez mais. De modo que entre o momento em que nós sabemos que o tesouro está enterrado no cemitério de Sad Hill e aquele em que, enfim, nós chegamos ali, a palavra (e a imagem) do cemitério mudou de sentido. É o filme que se encarregou de nos lembrar de que em um cemitério há mais cadáveres de soldados mortos do que tesouros enterrados. Didatismo sutil o de Leone: não se diz que existe a guerra, apenas se a encontra no curso do filme e se sente subitamente que ela está instalada há muito tempo e é um horror.

O que é belo, o que faz desse filme um grande filme sobre a guerra em geral, é que Leone não mescla mais os gêneros. Pela honestidade do artista ou pela intuição premonitória do futuro que aguarda o cinema. De um lado, ele propõe uma nova maneira de fazer flutuar os corpos em seus sobretudos e as figuras no deserto de uma paisagem ampla demais para elas. Figuras tautológicas, desconectadas de quase tudo, que não possuem nada além de um pouco de malícia e muita elegância quanto ao manuseio de objetos. Figuras que a publicidade, a moda e o videoclipe olharam muito desde então. E ao mesmo tempo, assim que a tela é povoada e que a guerra a bloqueia com pequenos soldados de carne e chumbo, Leone filma de forma diferente. Em plano geral, com o maior pudor e um respeito pelas distâncias e pelos personagens, o que irresistivelmente faz pensar naquele outro grande sentimental, pouco dado aos massacres fotogênicos, que foi John Ford. Exatamente como se Leone prolongasse por alguns anos a herança fordiana enquanto mostra a nova paisagem, aquela que vem depois e que não é mais da mesma ordem.

Pode acontecer (embora isso seja um defeito) de um filme conter muitos filmes. É raro que um filme se localize precisamente na encruzilhada entre a arte clássica cujo segredo logo estará perdido e as proposições barrocas cujas receitas serão um grande sucesso. É raro que um diretor seja honesto (ou esquizoide?) o bastante para simplesmente justapor, sem qualquer reconciliação possível, o que não é mais compatível. É ainda mais raro que, ao invés de sofrer por essa divisão, seu talento prospere sobre ela. É mais tarde, talvez, que o Leone de Era uma Vez na América sofrerá, quando ele tentar restaurar o classicismo no coração de um cinema que até lá terá absorvido de maneira irreconhecível o seu próprio maneirismo. Em 1966, é diferente. Sergio Leone está tanto à frente de todos quanto atrasado atrás de todos, portanto na hora certa". 


(O texto, publicado originalmente no Libération (dezembro de 1988), foi republicado em Devant la recrudescence des vols de sacs à main (Ed. Aléas, 1991) e consta também no livro Sergio Leone, escrito por Jean-Baptiste Thoret (Ed. Cahiérs du Cinéma, 2007). A tradução foi feita por mim a partir do original em francês e de uma tradução em inglês).