quinta-feira, 9 de julho de 2015

Um pouco de Diderot

“Por que um troca-tintas da ponte de Notre-Dame faria um retrato mais parecido do que um professor da Academia? É que este nunca se ocupou da imitação exata da natureza; é que ele tem por hábito exagerar, enfraquecer, corrigir seu modelo; é que tem a cabeça cheia de regras que o dominam e que comandam seu pincel, sem que o perceba; é que ele sempre alterou as formas segundo as regras do gosto e continua a fazê-lo; é que funde com os contornos que vê e que procura e vão copiar fielmente os contornos tomados aos Antigos que estudou, de quadros que viu e admirou e daqueles que fez; é que é instruído; é que é livre e não pode reduzir-se à condição de escravo e de ignorante; é que tem sua técnica, sua mania, sua cor, às quase sempre volta; é que faz uma caricatura bela, e o troca-tintas, ao contrário, faz uma caricatura feia.” Salão de 1767, Euvres esthétiques. Edição de Paul Vernière. Paris, Garnier, 1968, p. 507.)

"Estuda-se o manequim anatômico, diz-se, apenas para aprender a olhar a natureza; mas a experiência mostra que depois desse estudo torna-se muito difícil vê-la como ela é. Apenas vós, meu amigo, lereis estes escritos; assim, posso escrever tudo que desejar. E esses sete anos passados na Academia, a desenhar segundo modelo, julgais que foram bem empregados? Quereis saber o que penso? É lá e durante esses sete penosos e duros anos que se aprende a maneira do desenho. Todas essas posições acadêmicas, incômodas, afetadas, arrumadas, todas essas ações fria e desajeitadamente representadas por um pobre-diabo e sempre o mesmo pobre-diabo, pago para vir três vezes por semana despir-se e fazer-se de manequim para um professor o que têm elas em comum com as posições e ações da natureza? O que têm em comum o homem que puxa a água do poço do vosso pátio e aquele que, não tendo de puxar a mesma carga, simula canhestramente essa ação, com seus dois braços para cima, sobre o estrado da escola? O que tem em comum aquele que lá finge morrer com aquele que expira em seu leito ou a quem se mói de pancadas na rua? O que tem em comum esse lutador de escola com o da minha rua? Esse homem que suplica, que reza, que dorme, que reflete, que desfalece propositalmente, o que tem ele em comum com o camponês prostrado de cansaço no chão, com o filósofo que medita ao lado da lareira, com o homem que desfalece sufocado em meio à multidão? Nada, meu amigo, nada.
(...)
Entretanto, esquece-se da verdade natural; a imaginação enche-se de ações, de posições e figuras falsas, afetadas, ridículas e frias. Elas são armazenadas e daí sairão para se fixar na tela. Todas as vezes em que o artista pegar seus lápis ou seu pincel, esses fantasmas enfadonhos reanimar-se-ão, aparecerão diante dele; ele não poderá deles desviar-se e será uma façanha se conseguir exorcizá-los para expulsá-los de sua cabeça. (...) Se é tão raro ver-se hoje um quadro composto de um certo número de figuras sem encontrar aqui e ali algumas dessas figuras, posições, ações, atitudes acadêmicas que desagradam sumamente a um homem de bom gosto e que somente podem causar admiração àqueles que desconhecem a verdade, acusai o eterno estudo do modelo na escola.

(...) Não é na escola que se aprende a conspiração geral dos movimentos, conspiração geral que se sente, que se vê, que se espalha e serpenteia da cabeça aos pés.

(...) Hoje é véspera de grande festa: ide à paróquia, perambulai por entre os confessionários, e vereis a verdadeira atitude do recolhimento e do arrependimento. Amanhã, ide à taberna e vereis a verdadeira ação do homem enfurecido. Buscai as cenas públicas; sede observadores nas ruas, nos jardins, nos mercados, nas casas, e obtereis ideias precisas sobre o movimento real das ações e da vida. Escutai, observai vossos companheiros discutindo; vede como é a própria disputa que, sem que se deem conta, determina a posição de seus membros. Examinai-os bem, e deplorareis a lição de vosso enfadonho professor e da imitação de vosso insosso modelo. Uma coisa é uma atitude; outra, uma ação. As atitudes são falsas e vulgares; todas as ações são absolutamente belas e verdadeiras." 


Diderot – Ensaio sobre a pintura
"A incapacidade da crítica em reconhecer o valor da pintura impressionista, quando esta surgiu, gerou nos críticos futuros um complexo de culpa e uma intimidação tal que, hoje, tudo o que se anuncia como novidade a crítica se sente obrigada a aprovar. Essa observação foi feita por John Canaday, há muitos anos, quando exercia crítica de arte do New York Times. E ele acrescentou então: se hoje um pintor espremer uma bisnaga de tinta no nariz do crítico, ele será capaz de ver nisso uma manifestação de alta criatividade... 


O sarcasmo de Canaday reflete a perda de referência a que já haviam chegado, nos anos sessenta, críticos e artistas, não apenas nos Estados Unidos, mas no mundo inteiro. A instituição da novidade como valor fundamental da arte tornou-se uma espécie de terrorismo que inibe o juízo crítico e garante a vigência impune de qualquer ideia idiota. Como nas organizações políticas radicais, onde o exercício da sensatez pode ser tomado como indício de covardia ou traição, assim nos campos da 'vanguarda' levantar dúvidas sobre qualquer suposta inovação já era naquela época atitude suicida: quem a isso se atrevesse era imediatamente taxado de retrógrado, como hoje é taxado de 'careta'.

(...)

O artista, por sua vez, ou entra na desabalada carreira de obsolescência das modas ou não se submete e corre o risco de ser ignorado pela crítica, pelas instituições oficiais e pelo mercado. (...) a necessidade de mudança acelerada, imposta por circunstâncias exteriores ao processo de criação, contraria a natureza da arte e conduz a graves equívocos. Um deles é a valorização de artistas medíocres - que por isso mesmo aceitam alegremente as imposições da moda - em detrimento dos verdadeiros artistas, para os quais não tem sentido abrir mão de suas necessidades profundas, de sua autoconstrução e da construção de seu universo estético.

A posição contrária - a rendição à arte descartável - significa trocar essa busca interior pelo êxito exterior." 

Ferreira Gullar - Argumentação contra a Morte de Arte