quinta-feira, 30 de abril de 2020

Sinopse de Hiroshima Meu Amor, por Marguerite Duras


Estamos no verão de 1957, em Agosto, na cidade de HIROSHIMA.
Uma mulher francesa, de cerca de trinta anos, está na cidade. Veio aqui para interpretar um filme sobre a paz.
A história começa na véspera do regresso a França desta francesa. O filme em que ela toma parte está, com efeito, terminado. Falta apenas filmar uma sequência.
É na véspera do seu regresso a França que esta francesa, cujo nome nunca será mencionado no filme, que esta mulher anónima, portanto, encontrará um japonês (engenheiro ou arquitecto) e terá com ele uma breve ligação amorosa.
As condições do seu encontro nunca serão esclarecidas no filme. Não é aí que reside o problema. Por todo o mundo as pessoas se encontram. O que importa é o que se segue a esses encontros quotidianos.
Este par unido por acaso não é visto no início do filme. Nem ela, nem ele. Em vez do par, vêem-se corpos mutilados – à altura da cabeça e das ancas –, em movimento – ao amarem-se ou enfrentando a agonia –, e cobertos, sucessivamente, por cinzas, poalhas, pela morte atómica, enfim, pelos suores do amor praticado.
Só a pouco e pouco surgirão, desses corpos informes e anónimos, os corpos deles.
Estão deitados num quarto de hotel. Estão nus. Corpos lisos. Intactos.
De que falam eles? De HIROSHIMA, justamente.
Ela diz-lhe que viu tudo em HIROSHIMA. Vê-se o que ela viu. É horrível. Entretanto, a voz dele, negativa, acusará as imagens de mentirosas, repetindo, no seu tom impessoal e insuportável, que ela nada viu em HIROSHIMA.
O primeiro diálogo entre eles será portanto alegórico. Será, em resumo, um diálogo de ópera. É impossível falar de HIROSHIMA. Quando muito, pode-se falar da impossibilidade de falar de HIROSHIMA, pois parte-se do princípio de que o conhecimento de HIROSHIMA é um logro exemplar do espírito.
Este início, este desfile dos já célebres horrores de HIROSHIMA evocado numa cama de hotel, esta sacrílega evocação, em suma, é voluntária. Pode-se falar de HIROSHIMA em qualquer parte, mesmo numa cama de hotel, durante um encontro de acaso, um amor adúltero. Os dois corpos dos heróis realmente enamorados lembrar-nos-ão. O que é verdadeiramente sacrilégio, se de sacrilégio se pode falar, é a própria HIROSHIMA. Não vale a pena ser hipócrita e desviar a questão.
Por muito pouco que lhe tenha sido mostrado do Monumento de HIROSHIMA, desses terríveis vestígios de um Monumento do Vazio, o espectador terá de sair desta evocação bem limpo de muitos preconceitos e pronto a aceitar tudo quanto vai ser dito sobre os nossos dois heróis.
Ei-los que tornam, agora, à sua própria história.
História banal, história que todos os dias acontece milhares de vezes. O japonês é casado e tem filhos. A francesa também é casada e tem dois filhos. Estão a viver uma aventura que não passará daquela noite.
Mas onde? Em HIROSHIMA.
Este abraço, tão banal, tão de todos os dias, passa-se naquela cidade do mundo onde menos imaginaríamos: HIROSHIMA. Nada é “dado” em HIROSHIMA. Uma peculiar auréola envolve todas as palavras, todos os gestos, de mais de um sentido que o literal. Aqui reside uma das intenções mais importantes deste filme: acabar com a descrição do horror pelo horror, que os próprios Japoneses já realizaram, fazendo renascer esse horror das cinzas ao inscrevê-lo num amor inevitavelmente especial e “maravilhoso”. Neste amor se acreditará melhor do que se ele estivesse produzido em qualquer outra parte do mundo, num local que a morte não tivesse conservado.
Entre estes dois seres, tanto quanto possível separados geograficamente, filosoficamente, historicamente, economicamente, racialmente, e outras palavras em “mente”, HIROSHIMA será o terreno comum (o único no mundo, talvez?) onde os dados universais do erotismo aparecerão sob uma luz implacável. Em qualquer parte que não seja HIROSHIMA, o artifício é válido. Em HIROSHIMA, ele não pode existir sob pena, ainda, de ser negado.
Ao adormecer, falarão ainda de HIROSHIMA. De uma maneira diferente. À luz do desejo e, talvez sem o saber, do amor nascente.
As suas conversas tratarão tanto deles próprios como de HIROSHIMA. E as suas afirmações serão confundidas, misturadas de tal forma, desde então – depois da ópera de HIROSHIMA – que não será possível distingui-las umas das outras.
A sua história pessoal, por mais curta que seja, sobrepõe-se sempre a HIROSHIMA.
Se esta condição não fosse mantida, este filme, mais uma vez, não passaria de uma obra de encomenda, sem qualquer interesse, salvo o de um documentário romanceado. Se esta condição for observada, chegaremos a uma espécie de falso documentário sobre a lição de HIROSHIMA bem mais convincente do que um documentário de encomenda.
Eles despertarão. E voltarão a conversar, enquanto ela se veste. De várias coisas e também de HIROSHIMA. Porque não? É natural. Estamos em HIROSHIMA.
E ela aparece de repente, completamente vestida de enfermeira da Cruz Vermelha.
(Com este trajo, que é, em suma, o uniforme da virtude oficial, ele deseja-la-á de novo. Quererá voltar a vê-la. Ele é como toda a gente, como todos os homens, exactamente, e existe neste disfarce um factor erótico comum a todos os homens. Eterna enfermeira de um guerra eterna...)
Porque não quer ela, então, se também o deseja, voltar a vê-lo? Ela não dá razões claras.
Ao despertar, falarão também do passado dela.
Que se passou em NEVERS, sua cidade natal, nessa Nièvre onde ela foi criada? Que se teria passado na sua vida para que ela seja assim: tão livre e tão acossada ao mesmo tempo, tão honesta e tão desonesta ao mesmo tempo, tão equívoca e tão clara? Tão desejosa de viver amores de acaso? Tão cobarde perante o amor?
“Um dia”, diz-lhe ela, “um dia em NEVERS, estive doida”. Doida de maldade. Diz-lho como diria que uma vez, em NEVERS, tinha conhecida uma inteligência decisiva. Da mesma maneira.
Se é este “incidente” de NEVERS que explica a sua conduta actual em HIROSHIMA, ela não o diz. Narra o incidente de NEVERS como uma coisa diferente. Sem citar a sua causa.
Vai-se embora. Decidiu não tornar a vê-lo.
Mas voltarão a ver-se.
Quatro horas da tarde. Praça da Paz em HIROSHIMA (ou em frente do hospital).
Os operadores cinematográficos afastam-se (a única maneira como são vistos no filme é a afastarem-se com o material). Desmancham-se as tribunas. Arreiam-se as bandeirolas.
A francesa dorme à sombra (talvez) de uma tribuna que estão a desmontar.
Acabaram de filmar uma fita edificante sobre a Paz. Um filme de maneira nenhuma ridículo, apenas mais um filme, só isso.
Passa um japonês entre a multidão que mais uma vez rodeia o cenário do filme que acabam de terminar. Este homem é o mesmo que vimos no quarto, de manhã. Vê a francesa, pára, vai até junto dela e vê-a dormir. O olhar dele acorda-a. Olham-se. Desejam-se muito. Ele não está ali por acaso. Veio para voltar a vê-la.
O desfile terá lugar quase a seguir ao encontro deles. É a última sequência do filme que estão a filmar. Desfiles de crianças, desfiles de estudantes. Cães. Gatos. Basbaques. HIROSHIMA inteira estará presente, como sempre que se trata de servir a Paz no mundo. Desfile já barroco.
O calor será muito. O céu ameaçador. Eles esperarão que o desfile passe. É enquanto este decorre que ele lhe dirá que julga amá-la.
Levá-la-á para casa dele. Falarão muito pouco das suas existências respectivas.
São pessoas felizes com o casamento e que não procuram, juntos, qualquer contrapartida para uma infelicidade conjugal.
É em casa dele, e durante o amor, que ela começará a falar de NEVERS.
Ela fugirá outra vez de casa dele. Irão a um café, sobre o rio, “para matar o tempo antes da partida”. Caiu a noite.
Demorar-se-ão ainda algumas horas. O seu amor aumentará na razão inversa do tempo que lhes restará antes da partida do avião, no dia seguinte de manhã.
É neste café que ela lhe dirá porque esteve doida em NEVERS.
Raparam-lhe a cabeça em NEVERS, em 1944, aos vinte anos. O seu primeiro amante foi um alemão. Morto aquando da Libertação.
Deixaram-na numa cave, de cabeça raspada, em NEVERS. Só quando HIROSHIMA aconteceu é que ela esteve em estado de sair da cave e de se misturar à alegre multidão das ruas.
Porque escolher esta desgraça pessoal? Sem dúvida porque também ela é, ela própria, um absoluto. Rapar a cabeça a uma rapariga porque ela amou um inimigo declarado do seu país é um absoluto tanto do horror como da estupidez.
Veremos NEVERS, tal como já a víramos no quarto. E eles voltarão ainda a falar de si próprios. Mais uma vez, fusão de NEVERS e do amor, de HIROSHIMA e do amor. Tudo se misturará sem princípio preconcebido e da mesma maneira como esta fusão se verifica todos os dias, em toda parte onde casais faladores se encontram pela primeira vez.
Ela também não ficará ali. Voltará a fugir-lhe outra vez.
Tentará voltar ao hotel, acalmar o seu estado de espírito, mas não o conseguirá: sairá do hotel e voltará para o café, que já está fechado. E aí ficará. Lembrar-se-á de NEVERS (monólogo interior), do próprio amor, portanto.
O homem seguiu-a. Ela apercebe-se disso. Olha-o. Olham-se com o maior amor. Amor sem objectivo, estrangulado como o de NEVERS. Já afastado, portanto, no esquecimento. Portanto, perpétuo. (Salvaguardado pelo próprio esquecimento).
Ela não irá ter com ele.
Vagueará pela cidade. E ele segui-la-á como quem segue uma desconhecida. Num dado momento, abordá-la-á e pedir-lhe-á que fique em HIROSHIMA, como num aparte. Ela dirá que não. Recusa-se a toda a gente. Vulgar cobardia.
A sorte está lançada para eles.
Ele não insistirá.
Ela vagueará pela estação. Ele irá ter com ela. Olhar-se-ão como se fossem sombras.
Nem mais uma palavra a dizer, daí em diante. A iminência da partida imobiliza-os num silêncio fúnebre.
Trata-se, na verdade, de amor. Não têm outra coisa a fazer senão calar-se. Uma cena final terá lugar dentro de um café. Aí, encontrá-la-emos com outro japonês.
E sentado a uma mesa está aquele outro japonês que ela ama, completamente imóvel, sem qualquer reacção que não seja a de um desespero livremente consentido, mas que o ultrapassa fisicamente. É como ela já pertencesse a “outros”. E ele não pode deixar de o compreender.
De madrugada, ela voltará ao quarto. Ele baterá à porta alguns minutos depois. Era-lhe impossível evitá-lo. “Impossível deixar de vir”, desculpar-se-á.
E no quarto nada se passará. Estarão ambos reduzidos a uma terrível impotência mútua. O quarto, “ordem do mundo”, permanecerá imutável em torno deles, que nunca mais perturbarão essa ordem.
Nada de troca de confissões. Nem um gesto sequer.
Baptizar-se-ão ainda, simplesmente. Como? NEVERS, HIROSHIMA. Com efeito, ainda não são alguém aos olhos um do outro. Têm nomes de lugares, nomes que o não são. É como se a desgraça de uma mulher com a cabeça rapada em NEVERS e a desgraça de HIROSHIMA se correspondessem EXACTAMENTE.
Ela dir-lhe-á: HIROSHIMA é o teu nome.

(Tradução de Maria José Palla e M. Villaverde Cabral). 

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Conta Comigo (Rob Reiner, 1986)


A julgar pela frontalidade do registro, pela economia formal, pelo arranjo dramático e sua dinâmica no interior do grupo masculino, pelo subtexto homossexual, pelo sentimento de fuga da civilização e pelo canto – este canto por vezes entoado em coro, por vezes nascido para se sobrepor à tristeza; esta celebração da “própria existência, na carne, aqui e agora, gritada de forma desafiadora nas mandíbulas da morte” (Robin Wood) –, poderíamos nos lembrar de Hawks. Assim, Jerry O’Connell acende um cigarro, traga-o como o tragaria um menino (ou seja: sem tragá-lo), e conclui de forma hawksiana: “nothing like a smoke after a meal”.

Mas se Hawks surge primeiro, Ford o acompanha logo depois: Conta Comigo não prolonga aquilo que vimos, pela perspectiva dos adultos, em No Tempo das Diligências? Em ambos os filmes, uma jornada iniciática que termina por revelar aos personagens os sentimentos – nunca dissociáveis da verdade – que eles próprios desconheciam de início. Nesta jornada, em que percurso acaba por se tornar mais importante do que a chegada, uma família improvisada é cristalizada entre os peregrinos, figuras marginalizadas do seio social ou familiar. No centro desta família, a doçura inexprimível do personagem que busca fugir das garras de uma sociedade que não lhe quer ver bem sucedido: River Phoenix, como o John Wayne de ontem, é vítima de seu nome e de seu passado, buscando a redenção por um crime cometido (ou injustamente forjado) sem abdicar da absoluta sensibilidade que só encontramos nos grandes seres humanos. “I just wish that I could go some place where nobody knows me”, é o que diz Phoenix, ecoando o personagem de Wayne. Quando Bill Wheaton, o protagonista, se despede do seu melhor amigo (“I’ll see ya”), este lhe responde como outrora um pistoleiro responderia (“Not if I see you first”). Em seu último plano no filme, Phoenix caminha em direção ao horizonte, despedindo-se daquele universo que não pode lhe pertencer, repetindo o gesto resoluto de Ethan Edwards em outro filme de Ford.

Por outro lado, e isto é fundamental, as jornadas de ambos os filmes são alicerçadas em território que, apesar de idílico, não esconde a ameaça e o desejo da morte: para além de uma analogia pobre que se poderia traçar entre os índios em No Tempo das Diligências e a gangue chefiada por Kiefer Shuterland em Conta Comigo, os personagens principais dos filmes têm consciência de que percorrer a extensão daquele determinado caminho significa encarar a morte de frente. Em Ford, John Wayne quer chegar à pequena Lordsburg para se vingar daqueles que mataram seu irmão, o que pode incorrer na perda de sua própria vida. Em Reiner, encarar a morte adquire um sentido literal e outro metafórico: encarar o corpo do menino atropelado pelo trem e, ao mesmo tempo, descobrir o peso que a Morte deposita sobre cada personagem. Assim, Wheaton confronta os fantasmas da morte de seu irmão e da ausência de seu pai; Phoenix vislumbra por alguns instantes a imputação que lhe querem impor; Feldman é assombrado pelos assassinatos da Normandia. Neste palco bucólico em que a luz do sol incide suavemente sobre as árvores e o azul do céu resplandece, o trilho do trem é retilíneo e indica que é tênue a linha que separa a vida da morte. “We’re going to see a dead kid, maybe it shouldn’t be a party...”.

O’Connell, o mais puro e ingênuo entre os garotos, parece sobrar. Não é o caso de procurar por sentidos profundos para sua presença no filme e sua função no grupo masculino, mas antes constatar que é exatamente sua inocência que é colocada em causa com a presença iminente da morte. Curiosamente, é ele quem propõe a ideia inicialmente e é ele o mais inclinado a sabotá-la durante o trajeto, ao ponto de ser o primeiro a fugir quando Shuterland e seu bando encurralam os garotos para apanhar o corpo. No jogo de duplos que o filme constantemente encena, O’Connell é a outra face de Feldman, o menino que um dia teve a orelha queimada no fogão e agora desafia trens em movimento. Phoenix, claro, é o par de Wheaton: o primeiro dando sentido aos medos e inseguranças do segundo, e este lhe estendendo suas esperanças irrefreáveis. Phoenix cumpre aquilo que o pai de Wheaton nunca cumpriu e que um dia competiu ao personagem de John Cusack: “Kids lose everything unless there’s someone there to look out for them, and if your parentes are too fucked up to do it, then maybe I should”. Wheaton, por sua vez, também preenche a lacuna aberta pelo pai e irmão de Phoenix, que apesar de vivos não poderiam estar mais mortos.

Sobre as escalas de flashback, cumpre perguntar: este recurso não foi utilizado pelo próprio Ford em Liberty Valance? Sem o mesmo caráter revelador, obviamente, mas com a mesma luz que o rasgo no manto do passado permite entrever. Que os flashbacks pertençam somente ao personagem principal, ao escritor que escreve a história, não deve surpreender. As cenas com John Cusack iluminam não somente o passado de onde “derivam”, mas também o presente. Da dificuldade de Wheaton de expor verbalmente os sentimentos turvos que lhe consumiam, ou seja, da dificuldade de formulá-los e organizá-los, o que lhe surgiam eram somente imagens de um passado irrecuperável: daí a incompreendida cena em que ele conta para seus amigos, em torno da fogueira (iconografia típica do western), a história do menino obeso que se vinga através de vômitos em cascata no festival da torta, porque aqui as ações (imagens) são organizadas por seu talento e contrastam com os fiapos de memória que insistem em surgir em seus pensamentos e sonhos. São destes restos de memória e das memórias vívidas que Richard Dreyfuss extrai a matéria-prima de seu livro quando em face da tela de seu computador. São elas também que permeiam o plano final do filme, quando somos nós que estamos em face da janela do escritório, por onde vemos o escritor se juntar às crianças e abandonar a imagem.

sábado, 11 de abril de 2020


Isle of the Dead / Cavalo Dinheiro













Johnny Guitar (Nicholas Ray, 1954)



De um lado, Joan Crawford; do outro, Mercedes McCambridge. Duas faces de uma mesma moeda: obstinadas, capazes de guiar e cativar os homens à sua volta, pistoleiras de ocasião.

Instantes após o menino ferido (Ben Cooper) buscar refúgio no saloon de Vienna, a turbe ensandecida, liderada por Emma, entra no recinto querendo a cabeça de ambos. Vienna nega ter escondido o garoto, e é quando esta começa a inflamar seu discurso moral, não coincidentemente chamando todos de hipócritas, que o corpo do foragido se revela por debaixo de uma mesa.

Um pouco antes, o discurso moral era de Emma: quando se descobre que ela tinha razão sobre o paradeiro do menino, após os homens que a rodeavam não lhe darem ouvidos, ela reclama sua importância, enfurecida, e assume definitivamente o comando do bando.

Em tempos que recusam nuances*, provavelmente deve ser um choque para alguns o fato da heroína, mulher forte e independente, ser ela também hipócrita, enquanto a antagonista, hipócrita, é também uma mulher forte e independente.

Quando se compreende que essas designações são resultados de seus gestos, e não de diálogos preguiçosos ou modorrentos, conseguimos, talvez, medir a distância que singulariza um grande narrador.

*é preferível, por exemplo, que o vilão seja um mauricinho (homem branco cis hétero...) que estudou business nos Estados Unidos, para ficar no caso de um filme com o qual Johnny Guitar mantém algumas semelhanças temáticas (e apenas temáticas).

The Yards (Gray, 2000)





Essa sequência de planos = a história do filme. 

Dragged Across Concrete (Craig S. Zahler, 2018)


Que o Zahler é um cineasta limitado – basta perceber seu esquema geral de decupagem – e um bom roteirista – principalmente em matéria de diálogos – seus filmes já nos mostram. Dragged Across Concrete confirma a regra, mas aqui a limitação é substancialmente compensada pelo exercício com a luz (os amarelos que banham os corpos naquela atmosfera sórdida e crepuscular), com a cenografia (o palco de destruição esfumaçado no final) e com o trabalho dos atores (especialmente por parte do Mel Gibson e do Tory Kittles). Por outro lado, e curiosamente, essa inaptidão para operar recortes no espaço cênico deriva em planos gerais que acabam se adequando ao material dramático: vazios, pausas e zonas amplas de luz e sombra projetam e estendem os estados emocionais das personagens. Se o Zahler é consciente do próprio limite ou não, pouco importa; mas está lá o recuo paciente de sua câmera e a devoção ao roteiro que ele tem em mãos. Neste que é o seu melhor filme, ele se restringe ao essencial da ação, como se perseguisse sua vocação literária, mas ao mesmo tempo a insere no interior de blocos distendidos de tempo dos quais salta a impressão por vezes canhestra, por vezes interessante, de estarmos vendo um roteiro filmado – quando um romance como Mean Business on North Ganson Street, por exemplo, constantemente nos dá a impressão de estarmos lendo um roteiro literário. Neste último, entretanto, a experiência é muito mais interessante do que canhestra, o que talvez acrescente um ponto ao argumento de que o Zahler como cineasta é um bom escritor.


Um Limite Entre Nós (Denzel Washington, 2016)



"When you’ve destroyed something you’ve greatly loved, you learn to love to destroy" – Gregory Peck em Days of Glory.

De início, uma casa de tijolos batidos, marcada pelo tempo (pela chuva e pela neve), é habitada por um homem cujo pragmatismo estratégico a torna imperturbável. Este homem também carrega consigo as marcas do seu tempo, mas suas cicatrizes são internas. Depois, a ruína da casa acompanha a ruína do homem, não sobrevivendo à rebentação emocional que começa por germinar como um arbusto imparável, descontrolado, expansivo, e que termina por crescer até o ponto de se converter em árvore e ocupar todo o espaço que lhe é e não lhe é permitido. Viola Davis: "That was my first mistake: not to make him leave some room for me".

Um conflito logo se desenha lentamente entre os olhos dos protagonistas: se os olhos de Washington não choram porque o suor do trabalho lhe secou as lágrimas, os de Davis vertem indiscriminadamente a água acumulada ao longo dos anos.

No quintal exíguo dos fundos, não vemos senão um sofá desgastado, uma bola de beisebol dependurada sobre um galho de árvore, materiais e ferramentas, um jardim por cuidar. As paredes manchadas da casa não separam, antes agregam (pensemos nos diálogos que extravasam para outros espaços). "Some people build fences to keep people out... And other people build fences to keep people in", diz o personagem de Stephen McKinley Henderson, o mais sábio entre os sábios que lá pisaram.

Sobre esta casa, um céu em nuvens é rasgado sutilmente pelo enfraquecido sopro de trompete daquele cujas asas só não vemos porque estão escondidas por debaixo do terno marrom esfarrapado (e ao final já não há outro título para Gabe que não anjo caído).

Sim, poderíamos falar sobre o domínio não tão firmado de Washington na condução dos seus desenlaces narrativos (a resolução das intrigas extraconjugais, por exemplo). No fundo, poderíamos encontrar problemas de toda ordem neste filme por vezes irregular. Estes problemas existem, estão lá, mas diluem-se magnificamente quando, pacientemente, o cineasta desvenda sua função naquele processo: filmando à altura, respeitosamente, ele encontra o peso e a medida dos sentimentos verdadeiramente humanos, que hesitam entre a tempestade e a bonança. Também descobre, naquele cenário reduzido, um mundo de paixões resignadas, de corpos ressentidos, de fantasmas interiores e de sonhos malogrados.

Encarar a vida de frente, como Washington encara a morte. Fences é um filmaço.

O Medo Devora a Alma (Fassbinder, 1974)



As cores estonteantes, excessivas e simbólicas do filme de Sirk dão lugar à assepsia tonal de uma Alemanha ainda na sombra do pós-guerra, reduto de heranças hitleristas e de civis dispersos entre o nacionalismo racista e o jogo de interesses. A paisagem idílica no tableau final de Tudo que o Céu Permite (que para Fassbinder já estava longe de configurar um "happy end") é substituída, assim, pelo branco cadavérico de uma janela banhada por luz hospitalar.

Da parte de Fassbinder, este não é o único processo de radicalização de uma forma anterior. Também a câmera distanciada, situada à espreita dos batentes e das janelas, contrasta com a frontalidade e com o registro febril da câmera sirkiana (vide a morte na escadaria em Palavras ao Vento). Não se trata, nesse processo, de apenas vislumbrar as instâncias reguladoras do público e do privado – o que ocorre de forma clara nas cenas em que o vidro de uma fenestra se coloca entre a câmera e os personagens.

Na verdade, quando Fassbinder se debruça criticamente sobre essas instâncias, ele responde a um desejo mais amplo: a câmera se desaproxima para que se visualizem melhor as próprias estruturas narrativas que compõe o jogo melodramático – entre as quais se encontra, entre outras, a dialética social entre o público e o privado, os excessos e o mapeamento de moralidades. Inversão interessante ocorre na segunda metade do filme, quando a simplificação moral sirkiana (cá as vítimas, lá os algozes) cede espaço a sentimentos turvos e atos questionáveis por parte dos próprios protagonistas.

(Já os espelhos, estes continuam projetando mundos, sonhos e intimidades dilaceradas).


No filme de Sirk, quando Jane Wyman decide levar Rock Hudson para uma festa na casa dos moradores da vizinhança, os convidados curiosos transformam a festa em um verdadeiro circo de horrores e de aparências, sobretudo através das fofocas, dos olhares, dos preconceitos velados e até mesmo da briga que deste pandemônio resulta. Na cena em que Ali e Emmi sentam-se em um café na rua, por outro lado, eles são observados, sem cerimônias, por um grupo de escandalizados reunidos em frente do estabelecimento, petrificados e em silêncio.

Neste sentido, já não é mais necessária a ênfase no gesto ou na expressão dramática dos atores, traço característico dos melodramas hollywoodianos; aqui, o exagero está no lado inverso da moeda, ou seja, na ausência mesma desta ênfase. É o caso, também, da cena inicial, cuja imobilidade das personagens a tornam estátuas que respiram, evidenciando um entre tantos artifícios mediadores do melodrama. A úlcera no final não é menos absurda, em termos de deus ex-machina, do que o acidente de Rock Hudson no final de Tudo que o Céu Permite: a diferença é apenas de olhar.

O gênio de Fassbinder, entretanto, está em denunciar este mecanismo sem abdicar do senso de espetáculo e das emoções que o contornam.