segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

"Justiça para James Bond", por Nicolas Saada

"É um fato conhecido: a política dos autores ganhou, para o pior e o melhor. Não há uma fanzine, um hebdomadário, uma coluna de cinema na televisão que não fale no 'último filme de'... Em trinta anos, raros são os cineastas que puderam escapar dela: os filmes são sempre reduzidos ao indivíduo atrás da câmera. 

Nunca ocorreria a alguém evocar a série James Bond citando os nomes de seus diretores. É difícil imaginar um cinéfilo com raiva de um amigo por causa de John Glen, Lewis Gilbert ou Peter Hunt. Dizemos 'um James Bond', espécie de termo genérico que engloba toda a série desde a sua criação. 

Os primeiros James Bond foram finalmente lançados na França em DVD, numa ordem quase cronológica, após os lançamentos de 007 - O Amanhã Nunca Morre e 007 contra GoldenEye no ano passado. Está aí a ocasião para se tentar compreender como os filmes a priori mais impessoais da história do cinema são certamente muito mais interessantes e fascinantes do que se imaginava.  

François Truffaut via nos James Bond uma frágil paródia dos filmes de Hitchcock e de Intriga Internacional, exprimindo assim seu desprezo pela série. Fellini, por outro lado, nunca escondeu sua paixão pelos James Bond, e até acarinhava a fantasia de realizar um. Cada DVD é acompanhado de um documentário explicando a gênese e a produção dos filmes. Sentimos que por trás de toda essa empreitada esconde-se muito mais que um punhado de groupies: trata-se antes de apaixonados pelo assunto, que redescobriram arquivos, trechos de entrevistas e esboços. 

007 contra o Satânico Dr. No e Moscou contra 007, filmados um após o outro entre 1962 e 1963, se distinguem, em primeiro lugar, pelo toque não negligenciável de seu diretor, Terence Young. Ele inventa o estilo James Bond, com seu ritmo nervoso e a montagem truncada de Peter Hunt, mestre no assunto. Dr. No, filmado sob as condições de uma verdadeira Série B, é uma mistura bizarra de filmes de aventura e de ficção científica, sem gadgets, mas com a direção artística de Ken Adam, que impressionou Kubrick ao ponto de este contratá-lo para Dr. Fantástico. Moscou contra 007 é um verdadeiro filme de espionagem, inspirado em Five Fingers de Mankiewicz, citado inúmeras vezes. Nele encontramos Lotte Lenya como uma espiã sádica. É uma joia de invenção gráfica e de escárnio. 

Os James Bond não são simples filmes ingleses (certamente uma razão para que Truffaut os detestasse). Eles podem ser comparados ao que chamamos, em arquitetura, de 'estilo internacional': uma moda cujas raízes remontam à Bauhaus alemã. Ken Adam, que desenhou inúmeros cenários dos James Bond, tinha origem alemã e isto, sem dúvida, explica aquilo. Se os filmes de James Bond são tão desprezados - o que é totalmente injusto -, é porque eles nunca exprimem um sentido 'secreto' da mise en scène ou o ponto de vista de um autor sufocado pelas regras de um gênero. Foi por pleno conhecimento de causa que os diretores dos James Bond se inseriram na série, assim como Sean Connery também se inseriu nela com os figurinos sob medida do alfaiate Turnbull & Asser. Terence Young concebeu visualmente o herói internacional. E foi ele quem inventou o que hoje chamamos de filme de ação. 

Os DVDs de James Bond reproduzem maravilhosamente o clima insólito dos primeiros Bond, com suas cores selvagens e seu formalismo devastador. Deste lote de relançamentos emerge Goldfinger de Guy Hamilton, que assinou outros James Bond - nenhum, no entanto, atinge a loucura e a invenção daquele. Por quê? Robert Bresson qualificava Goldfinger como 'notável', para a surpresa de muitos, que viam por parte do mestre uma brincadeira ou uma provocação (ou os dois). Bresson, o Cineasta, observava um mundo vasto e secreto se agitar. Goldfinger é o inverso de Bresson: uma máquina anônima, sem identidade, que produz um número espantoso de ideias de cinema, sem efeito de assinatura, sem a sombra de uma 'personalidade' no comando. Goldfinger é uma obra-prima pura. Um perturbador trabalho coletivo onde a noção de filme de autor desaparece em benefício de um 'filme autor'. O documentário que acompanha o filme, comentado por Patrick McNee (Steed, John Steed), leva em consideração esta ideia. Ele fala de um trabalho de equipe a serviço de uma máquina sutil, o James Bond, programa rodado, sem piloto, mas com uma equipe brilhante, uma conjunção de talentos únicos em seus gêneros: Ken Adam, Peter Hunt, Guy Hamilton, John Barry. 

Com o declínio dos anos 70, James Bond conhece um último sobressalto em 1969 com 007 - A Serviço Secreto de sua Majestade: é o único filme da série que não é um programa. Dirigido por Peter Hunt, ele explora o personagem sob um ângulo inédito. O filme reúne o elenco mais belo de todos: Diana Rigg como Bond Girl, Gabrielle Ferzetti recém saído de Antonioni, e Georges Lazenby. É um James Bond em que pela primeira vez se passa algo de pessoal, de singular. Ele é estruturado de maneira relaxada, quase desordenada, como sob influência perniciosa do cinema moderno. No DVD, seu diretor comenta a cena de abertura com um tom casual ('Oh, it's charming', ele repete). Como se ele não fosse consciente nem por um segundo da beleza macabra do mais bem sucedido filme de James Bond.  

É este jogo entre o vazio absoluto e a graça desconcertante que faz dos filmes de James Bond uma experiência jubilatória. O DVD faz então justiça aos melhores James Bond, singulares e magníficos objetos, filmes anônimos onde a mise en scène se exprime a despeito do espetáculo, em doçura, mas não em contrabando". 

Nicolas Saada, Cahiers du cinéma nº 550, outubro de 2000. 

domingo, 6 de dezembro de 2020

Tenet, por Jean-Baptiste Thoret

"Contrariamente ao que se escreve/diz por aí, a história de Tenet é extremamente simples, e mesmo simplista: a fim de evitar uma terceira guerra mundial, um agente secreto segue as pegadas de um russo malvado que detém consigo qualquer coisa como plutônio. Depois, ele se apaixona pela mulher deste último. Juntos, e na companhia de outros personagens coadjuvantes, eles percorrem o mundo para evitar que o desastre aconteça. É pouco, mas é tudo. No lado dos atores, o bad guy é interpretado por Kenneth Brannagh (que reassume o papel que ele possuía em Operação Sombra - Jack Ryan), sua mulher, pela surpreendente Elizabeth Debicki (mesma coisa: ela é Thandie Newton em M:I 2) e o herói sem nome por John David Washington, um ator novo que prova que o carisma não é genético. No lado dos cenários, o escapismo frenético do filme nos impede de explorar realmente qualquer um deles. O filme, então, é uma catástrofe jamesbonderiana tal como Hollywood produziu e ainda produz em grande quantidade, na verdade mais próxima da série ultra B (menos a modéstia e o charme) do que desse blockbuster de autor que, ao que parece, vai salvar o cinema. Além disso, ao final das 2h40, estamos mais certos de querer salvá-lo. O roteiro naturalmente trabalha no sentido inverso de sua história frágil. Trata-se de fazer acreditar que o filme é muito mais inteligente do que parece, agitando por todo lado trapos custosos que, este é o objetivo, farão esquecer que no fundo da cartola não há o menor traço de coelho. Nolan e seu roteirista, o mesmo Nolan, embaralham as cartas a partir de um princípio bobo: tudo que é simples, na verdade, é muito complicado. E o inverso: é isto que desencadeará a febre hermenêutica de certos espectadores convencidos que o camundongo, quando autopsiado em detalhes, era na verdade um boi. A famosa síndrome do pião. É necessário, então, preencher ou mascarar o vazio à maneira daqueles fumígenos que, nos filmes de ficção científica barata dos anos 50 e 60, recobriam com uma aura misteriosa os rochedos e as criaturinhas de papelão. É necessário esticar as sequências em todas as direções, mostrá-las duas vezes (mesmo as piores: a luta interminável entre o herói e seu duplo de capacete nos corredores de um hangar) e disseminar, por toda parte, pequenos grãos para serem bicados (o espelho quebrado de um retrovisor!) e que farão a alegria de geeks e de pombos. Estratégia que Nolan já havia empregado em Inception: quando um filme não pensa nada, é preciso produzir a ilusão de que ele pensa em tudo. Como fazer: mergulhar essa pequena história em um jargão científico muito sério, fazer com que os atores, que não tem mais nada para interpretar, recitem diálogos alucinantes com uma seriedade papal, emaranhar o todo em paradoxos temporais e em pequenos quebra-cabeças lógicos dignos daqueles que encontramos na seção de adolescentes da Nature et Découverts (se é que isso ainda existe). Tudo isso não torna o filme menos acessível, pelo contrário, mas abre-o para uma indiferença que, neste caso, nos deixa tempo para refletir sobre aquilo que vemos realmente. Porque se Nolan parece se divertir bastante na companhia de seus brinquedos, para nós ele não alcança nada. Mesmo musculoso, seu paquiderme permanece um fracote tolo. A operação de esfumaçamento até se volta contra o filme, à medida que este avança, tanto Nolan se mostra incapaz de articular seus pequenos dispositivos científicos a uma visão de conjunto, a afetos ou a personagens reduzidos aqui à autômatos minados. Como para as crianças, o mundo de Tenet termina nos limites do parquinho de seu autor. Afinal, as histórias simples nunca impediram os bons filmes, nem o jogo sobre o tempo - sobre um tema similar, Déjà Vu de Tony Scott (que Nolan teve de estudar atentamente) e o formidável Odisseia para Além do Sol de Robert Parrish (1968) esmagam Tenet. Ainda é preciso ter algo a dizer, uma emoção a fazer sentir, eventualmente uma ideia. Não sejamos ingênuos: Nolan permanece fechado em si mesmo. O filme é veloz mas é interminável. E é seu paradoxo mais saboroso: ele brinca sobre e com o tempo mas não sabe como lidar com ele (o que poderia ter sido um belo tema). Ele o despacha. Tudo já está aí, desfila, nada existe realmente. Mas onde o filme surpreende, e talvez mais decepcione, é em sua incapacidade de manter sequências bastante simples (as conversas decupadas com uma colher de pedreiro: uma réplica/um plano), de dispor um cenário no espaço, de fabricar uma sequência de ação sólida - o filme prova, mais uma vez, o quanto o cinema de ação é um gênero exigente que requer inventividade e precisão. Imaginemos somente a sequência da autoestrada realizada por McTiernan, J. Cameron, as Wachowski ou G. Miller. Sem dúvida, Nolan só tinha em sua bolsa um único truque, que ele utilza ad nauseam: mostrar o efeito antes da causa, filmar uma bala que retorna para seu tambor, um carro que se põe novamente em pé, um prédio que se reconstrói, etc... É pobre, mas why not? Ora, mesmo esse pequeno dispositivo não funciona. Nem o prazer do olho. Por que? Hipótese: o princípio do suspense, sobre o qual o filme, apesar de tudo, se baseia, repousa precisamente no gozo da expectativa ansiosa por um efeito do qual conhecemos a causa. Ora, invertendo a causa e o efeito, o filme desativa o próprio mecanismo à partir do qual ele quer avançar. A refletir, talvez, pelo lado do burlesco". 

- Jean-Baptiste Thoret, em post no seu facebook. 

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Serge Daney sobre Shadi Abdel Salam

"Em 1979, um filme é lançado no Cairo. Título A Múmia. Lançamento desleixado, público raro. O filme está há dez anos nas caixas. Ele dará a volta ao mundo, mesmo que discretamente. Nós o veremos em Paris. Ficaremos boquiabertos. Aprenderemos a pronunciar o nome de seu autor, Shadi Abdessalam, e a pensar que além do polo Chahine e do polo Abou Seif, há no cinema egípcio o polo Abdessalam. Esperaremos outros filmes dele. Nenhum longa virá. Alguns terão a oportunidade de ver dois curtas-metragens: O Camponês Eloquente (1970) e Les Armées du Soleil (1974). Ambos suntuosos. Pois aplicada a Abdessalam, a palavra 'esteta' é fraca, quase vulgar. O gosto pela beleza acompanhou o homem por toda sua vida (envolto em sua capa, ele era majestoso). Não uma beleza sobreposta, excedente, mas o que era belo, desde sempre, no Egito. Desde sempre, isto é, faraós inclusos. Shadi Abdessalam foi único nisso: ele filma um Egito que não começa com o Egito, e seu Camponês eloquente que vem pedir justiça para o faraó é irmão dos soldados da guerra de 73 ou de Wannis, o herói desamparado de A Múmia

Nascido em 9 de março de 1930 em Alexandria, após estudar em Oxford, Shadi Abdessalam passa pelo Instituto de Belas Artes do Cairo, de onde ele sai em 1955, diplomado em arquitetura. Ele opta pelo cinema, é assistente em quatro filmes antes de se ver contratado pela Fox como assistente de cenografia em Cleópatra de Mankiewicz (1963). Da mesma forma, quando o polonês Kawalerowicz filma seu Faraó (1966) ou quando o italiano Roberto Rossellini supervisiona La lutte de l'homme pour sa survie (1967): Abdessalam é o homem por quem a reconstituição histórica passa. Tanto que, quando ele passa por sua vez para trás das câmeras, ele tem, além de sua cultura pessoal, uma ideia de estado internacional (e não somente egípcio) do cinema. 

A Múmia, seu único longa-metragem, se chama também A Noite em que Contamos os Anos. Em 1881, a pilhagem de tumbas se tornou um crime. Certas tribos - como a dos Horabat de Tebas - viviam por muito tempo desses saques, possuindo o conhecimento secreto de um Esconderijo real. Um jovem homem herda esse segredo e compreende confusamente que os tempos estão mudando e que ele deve revelá-lo. Não há dúvida de que se ele houvesse filmado mais, Abdessalam teria retornado a essa arqueologia, essa gênese do 'homo egyptianus'. Único egiptólogo do cinema egípcio, ele sabia, no menor detalhe, do quê ele estava falando. A beleza de A Múmia vem, para nós, desse sentimento de que tudo foi escolhido, pesado e amado - depois filmado, inelutavelmente. 

A partir de 1968, Shadi Abdessalam lecionou no Centro de cinema experimental do Cairo. Então sua vida se confundiu com uma ideia fixa: Akhenaton. O projeto se tornou decididamente mítico. Megalomaníaco demais, caro demais, intempestivo demais na paisagem mais uma vez demasiado provincial do cinema egípcio? Talvez. Ouvíamos que o cineasta já havia tudo desenhado, previsto, modelado, ao ponto de o filme, em certo sentido, já ter sido feito, transformado em museu antes de ter sido película. 

A doença (que terminou por tirar-lhe a vida) tornava a ressurreição do faraó monoteísta ainda mais improvável. Nas filmagens de Adieu Bonaparte, almas vigilantes sussurraram a Jack Lang que existia um outro projeto egípcio, soberbo e louco. Era sem dúvida tarde demais". 

- Libération, outubro de 1986. Tradução minha. 

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

"Leone na guerra", por Serge Daney

"Se, como a percepção, o filme é uma alucinação verdadeira, certos filmes são verdadeiras alucinações. Resta deles – persistente – uma imagem, apenas uma. Ou um ritornello, assinado por Morricone. Todo mundo os viu, pensa que os viu ou acredita que todo mundo os tivesse visto. Eles não se distinguem mais do impacto que eles tiveram, da paisagem que eles abriram ou dos clones que lhes deram continuidade. Tanto é que quando cruzamos com eles na tela pequena ficamos perplexos ao redescobrir aquele estado de frescor que eles – e nós também – tinham em seu nascimento. É o caso, por exemplo, dos três primeiros faroestes de Sergio Leone (chamados “spaghettis” sem dúvida porque seu autor, no fundo, é feito da boa massa com a qual se faziam os humanistas) e de Três Homens em Conflito, que o canal France 3 exibiu na segunda à noite.

O filme começa pelo que terminou por restar dele, por este exibicionismo de entradas no campo e na ação, comparável (tanto o dizemos que é um clichê) às grandes árias das óperas veristas. Três atores pertencentes a três mundos do cinema (Wallach vem principalmente de Kazan, Van Cleef foi coadjuvante em Ford, Eastwood ainda não é Eastwood) se entregam à jubilação de três recitativos e se preparam lentamente para disputar entre si um tesouro perdido de duzentos mil dólares. Tudo passa por seus olhos (mais do que pelas suas interpretações), olhos que estão lá mais para serem vistos do que para ver. Franzidos, odiosos ou redondos, esses órgãos da visão não impedem seus detentores de desperceber a única realidade da época: a guerra civil (chamada, em nosso país, 'de Secessão').

Pois é aí que a revisão na TV de Três Homens em Conflito se revela uma experiência fascinante. O verdadeiro filme não se assemelha à lembrança que ele havia deixado. Não há três personagens, mas quatro, e se é preciso quarenta minutos para introduzir os primeiros, é preciso ainda mais para permitir ao quarto – a guerra – deslizar sobre o quadro e pesar sobre ele cada vez mais. De modo que entre o momento em que nós sabemos que o tesouro está enterrado no cemitério de Sad Hill e aquele em que, enfim, nós chegamos ali, a palavra (e a imagem) do cemitério mudou de sentido. É o filme que se encarregou de nos lembrar de que em um cemitério há mais cadáveres de soldados mortos do que tesouros enterrados. Didatismo sutil o de Leone: não se diz que existe a guerra, apenas se a encontra no curso do filme e se sente subitamente que ela está instalada há muito tempo e é um horror.

O que é belo, o que faz desse filme um grande filme sobre a guerra em geral, é que Leone não mescla mais os gêneros. Pela honestidade do artista ou pela intuição premonitória do futuro que aguarda o cinema. De um lado, ele propõe uma nova maneira de fazer flutuar os corpos em seus sobretudos e as figuras no deserto de uma paisagem ampla demais para elas. Figuras tautológicas, desconectadas de quase tudo, que não possuem nada além de um pouco de malícia e muita elegância quanto ao manuseio de objetos. Figuras que a publicidade, a moda e o videoclipe olharam muito desde então. E ao mesmo tempo, assim que a tela é povoada e que a guerra a bloqueia com pequenos soldados de carne e chumbo, Leone filma de forma diferente. Em plano geral, com o maior pudor e um respeito pelas distâncias e pelos personagens, o que irresistivelmente faz pensar naquele outro grande sentimental, pouco dado aos massacres fotogênicos, que foi John Ford. Exatamente como se Leone prolongasse por alguns anos a herança fordiana enquanto mostra a nova paisagem, aquela que vem depois e que não é mais da mesma ordem.

Pode acontecer (embora isso seja um defeito) de um filme conter muitos filmes. É raro que um filme se localize precisamente na encruzilhada entre a arte clássica cujo segredo logo estará perdido e as proposições barrocas cujas receitas serão um grande sucesso. É raro que um diretor seja honesto (ou esquizoide?) o bastante para simplesmente justapor, sem qualquer reconciliação possível, o que não é mais compatível. É ainda mais raro que, ao invés de sofrer por essa divisão, seu talento prospere sobre ela. É mais tarde, talvez, que o Leone de Era uma Vez na América sofrerá, quando ele tentar restaurar o classicismo no coração de um cinema que até lá terá absorvido de maneira irreconhecível o seu próprio maneirismo. Em 1966, é diferente. Sergio Leone está tanto à frente de todos quanto atrasado atrás de todos, portanto na hora certa". 


(O texto, publicado originalmente no Libération (dezembro de 1988), foi republicado em Devant la recrudescence des vols de sacs à main (Ed. Aléas, 1991) e consta também no livro Sergio Leone, escrito por Jean-Baptiste Thoret (Ed. Cahiérs du Cinéma, 2007). A tradução foi feita por mim a partir do original em francês e de uma tradução em inglês). 

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Breton / Carax

"Admiro muito esses homens que se deixam trancar num museu à noite para poder contemplar à vontade, em tempo ilícito, um retrato de mulher que iluminam com uma lanterna. Como é que, depois, eles não iriam saber sobre essa mulher muito mais do que nós sabemos?" (Nadja, André Breton).

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Ride Lonesome (Budd Boetticher, 1959)

"Fora da Lei"

As medidas da intuição. Cavalgada Trágica e Homem que Luta Só, lançados quase ao mesmo tempo em Paris, são produto de um mesmo cineasta, Budd Boetticher, de um mesmo roteirista, Burt Kennedy, de um mesmo gênero, o Western, de uma mesma imagem, o scope a cores: dois reflexos de um mesmo espelho.

Semelhante, em comparação, por exemplo, ao conjunto Hellman/Nicholson, a equipe Boetticher/Kennedy transgride paralelamente os cânones hollywoodianos; paralelamente, mas em sentido contrário. Se Disparo para Matar era uma reação consciente contra certa cultura do cinema, em Boetticher as diferenças afloram intuitivamente, no interior da desordem. Homem que Luta Só é, antes de tudo, prazer de filmar comportamentos simples, ações sem motivos, uma maneira de viver: aquela mesma de Boetticher, que rompe - por acaso? - com certas hipocrisias codificadas, certas máscaras formais.

É preciso formular isto teoricamente? Vejamos quatro níveis de investigação, que cotejam o que há de mais novo sob o sol do cinema moderno.

As variações simultâneas. Roteiros idênticos, a partir de elementos idênticos, de acordo com uma estrutura idêntica, que varia: Aventureiro solitário / Vingança pela memória de uma mulher / Índios / Jovem mulher sozinha / Fora-da-lei / etc. Os lugares, como os trajetos, os personagens, como os atores que os assumem, são evidentemente análogos. De onde surge a única constante: Randolph Scott. 

Esses cubos que se encaixam, assim, variam estruturalmente de um filme a outro. Elementos depurados, reduzidos apenas às arestas dirigentes. Inseridos em uma decupagem nua, límpida. Cada plano logicamente direcionado para uma fase da ação, para um trajeto do ser.

Essas variações em cadeia tramam fatalmente o agenciamento dos planos. Cada cena é, então, decupada de acordo com as séries de pontos de vista. Não mais, como habitualmente, redistribuídos, mas dispostos desde o início, e variando apenas em sua repetição.

Hollywood? Ou certo cinema atual da Europa? Como um Jean-Daniel Pollet (da linha de Mediterranée, Bassae, Le Horla, Tu imagines Robinson, como da linha de Pourvu qu'on ait l'ivresse, Gala, Rue Saint-Denis, L'amour c'est gai, l'amour c'est triste), que retoma elementos definidos de longa data e trabalha apenas sobre suas variações.

A consciência clara. O Herói hollywoodiano é figura doente, marca de signos de uma ideologia que não lhes admite ideológicos, conduzindo cada vez mais o espectador para sua fraseologia. Recalque característica da escritura burguesa.

O Homem que Luta Só, como seu análogo, evita todo subentendido, toda significação escondida; se apresenta tematicamente, além disso, como uma agressão aberta contra todo recalque ("o esquecimento" de Frank, perseguido por Randolph Scott).

Uma interpretação liberada de todo psicologismo: nem mímicas, nem mensagens. Apenas as faces, os corpos, tudo que é mostrado. Os homens não são nada além de seres que caminham, comem, trocam, lutam, sem nenhuma transcendência, imanentes até o limite do insuportável, dissociados das premeditações dramáticas, dos eventos.

A consciência real desses homens, seus signos e seus atos são, sobretudo, constantemente anunciados, "telefonados". O diálogo formulando cada intenção, cada significação antecipadamente.

Essa figura, que rompeu a distância entre aparência e signo, é o embrião do personagem revolucionário. Ele diz, necessariamente, a ideologia que ele veicula (o que não significa que ele a anuncia claramente: esta seria a tarefa do filme conscientemente revolucionário). E, como por encantamento, ele escapa a toda classificação maniqueísta para constatar somente os planos econômicos (as trocas) e individuais (a vingança).

Narração três vezes mostrada. Assim, o personagem impõe uma ficção do tipo "mito de Édipo": seu "suspense" é constantemente despedaçado porquanto implacavelmente previsto. Não importa mais o que pode acontecer, mas o que o diretor vai fazer com as premonições do diálogo. Narração, então, aberta ao olhar.

Assim, as variações simultâneas que, para cada sequência, admitem seus ângulos do campo, forçam o espaço instituído da narração a se separar do desenvolvimento ficcional que funciona em trajeto.

E, dessa forma, a decupagem, enfim, pulsão lenta e regular, contenção tensa e estática, emerge tanto mais na medida em que se opõe às características tradicionais da ficção ("Western"): rapidez, ritmo, surpresa. Daí o desacordo entre uma narração imóvel e uma tradição de gênero, uma freando a outra que tenta se impor sem sucesso.

A ficção, por quê? Com Homem que Luta Só, Boetticher retomou pela enésima vez a mesma história. Instalada, já desde muito tempo, em uma estrutura temática, de filme a filme ele redispõe, para ali se perder, os deslizes, as vertigens agradáveis de uma visão imaginária. Ritual de representação que não se localiza mais apenas na tela, mas deriva do próprio funcionamento do autor.

Os livros, os filmes, desenvolvem em ficções metafóricas as dificuldades de suas elaborações, a solidão do papel branco; sua função: em primeiro lugar, permitir ao autor, por meio de um exorcismo perturbador em frente do espelho, de assumir por imagens interpostas as dimensões, em si mesmo, da obra.

Essas ficções de apoio iluminam o leitmotiv de Homem que Luta Só. Randolph Scott, ferido pelo passado, sozinho, satisfazendo esta lembrança através de uma curva – a vingança – exclusiva de todo desejo (repelindo, entre outros, a mulher, que claramente o atrai) responde à situação do diretor diante do filme a ser feito, do roteirista diante do roteiro a ser escrito. Ele solicita o cineasta a se sublimar em cada um de seus planos, o excita em abismo, a partir de suas próprias exigências.

As ficções de O Homem que Luta Só não reportam mais somente à própria narração; elas dizem, como por efeito de trampolim, sobre a produção. Elas são a aurora desse cinema insuportável, consciente até a incandescência, que anunciaria, simples e unicamente, sua economia.

- Sébastien Roulet, "Hors la loi". Cahiers du Cinéma, nº 211, abril de 1969 (Tradução minha, do original em francês). 

terça-feira, 15 de setembro de 2020

De Hawks a Blain













Scarface (Howard Hawks, 1932) / Jusqu'au bout de la nuit (Gérard Blain, 1995)

Pierre et Djemila (Gérard Blain, 1987)

Muita coisa para dizer sobre o Blain (a ponte possível entre Bresson e Brisseau?) e sobre Pierre et Djemila (que escapa a quase todas as definições). Há um aspecto, no entanto, a ser sublinhado: li que o filme sofreu duras críticas na ocasião de seu lançamento, pela sua associação (e do Michel Marmin) à nova direita e pelo trato da questão árabe. Esta recepção é curiosa, posto que “árabes” e “franceses” são todos dispostos em uma arena complexa de tensões sociais. A dimensão fulleriana do filme não decorre tanto dessa circunscrição de conflitos, mas da recusa por toda e qualquer generalização no contexto dessa arena: as palavras que Jean Narboni dedica a Fuller (“Individualista intransigente, obcecado pela contagem de um por um, criador de personagens – principais, secundários, e mesmo simples silhuetas – com relevo e singularidades inesquecíveis, ele se opõe ao maniqueísmo que lhe foi relegado há muito por sua reputação de primitivo pulsional”) poderiam ser ditas, de certa forma, sobre Blain e sobre este filme.

Em Pierre et Djemila, portanto, não se pode falar sobre “árabes”, como não se pode falar sobre “franceses”. Pode-se, por outro lado, falar sobre indivíduos e sobre a relação que estes mantêm ou são obrigados a manter com a religião ou com o Outro (cf. a mãe algeriana ou o pai francês). A máquina religiosa ou a mentalidade pequeno-burguesa, estas, sufocam o indivíduo e estreitam suas possibilidades, o que configura o próprio drama do filme, já que estamos diante de uma óbvia reatualização de Romeu e Julieta.

O que leva ao meu ponto central: se é verdade que o único assassinato do filme ocorre pelas mãos de um muçulmano convicto (o “outro lado”), também é certo que sua radicalidade é produto de uma sociedade francesa intolerante. Para Blain – cineasta da economia narrativa, da depuração, das elipses desconcertantes, dos gestos mínimos –, bastam dois planos, angulados de forma semelhante e dispostos em lugares diferentes na narrativa (porque o cineasta confia em seus espectadores para juntar as peças), para afirmá-lo sem meias-verdades: no primeiro, um menino muçulmano observa as consequências de um ataque francês à mesquita onde sua comunidade se reúne; no segundo, o assassino, após perpetuar o gesto derradeiro, se recolhe na mesma mesquita, agora arrumada, e se senta para rezar. Neste momento final, aquele menino que vimos antes se torna, retrospectivamente, a imagem da infância do muçulmano radical, que cresceu sob os mesmos ataques e a mesma intolerância.


Não surpreende, então, que o filme tenha sido recusado e simplesmente jogado às carcaças da nova direita. Na cartela inicial de Jusqu’au bout de la nuit, uma citação de Hölderlin postula a vocação da poesia em garantir um mínimo de insegurança à sociedade para que esta não “adormeça fatalmente”. Porque Pierre et Djemila suscita esta insegurança, demonstrando atenção às contradições sociais, denunciando dialeticamente a violência incessante cometida no interior de uma sociedade dita progressista – e embebida de falsas certezas –, provavelmente foi preciso rejeitá-lo, desvirtuá-lo, relegá-lo às classificações fáceis, para que a segurança das boas consciências pudesse ser restabelecida sem prejuízos.

No mais: obra-prima e possivelmente o melhor filme do Blain.

Jusqu'au bout de la nuit (Gérard Blain, 1995)

 

Curiosamente, um filme do mesmo ano de Heat, com o qual reserva algumas semelhanças. Jusqu'au bout de la nuit, aliás, poderia ser outro título para o filme do Mann. 

De Bresson a Blain

 

Mouchette (Robert Bresson, 1967)

Le Rebelle (Gérard Blain, 1980)

Pierre et Djemila (Gérard Blain, 1987)

sábado, 12 de setembro de 2020

Traviata 53

Vittorio Cottafavi ainda não deu o melhor de si, embora seja preciso rever Pecadora Marcada, talvez inteiramente admirável. Mas este filme abandonou nossas telas há mais de dois anos, nos impedindo de verificar um julgamento já antigo. Ali, uma mise en scène surpreendente se encontrava definida, preciosa e paroxística, sem dever nada a ninguém, sobretudo ao neo-realismo então triunfante. Um cinema de paixão, de torturas, de terror e de amor se inventava diante de nossos olhos maravilhados, em gestos raros, em olhares de pedra, gelo e metal, em silêncios ensurdecedores. Pudemos encontrar em seguida, principalmente em I Piombi di Venezia, e em menor medida em A Revolta dos Gladiadores e As Legiões de Cleópatra, apesar do interesse intermitente de seu autor por esses dois filmes, os mesmos reflexos de uma sensibilidade super aguda, em torno de certas jovens mulheres tratadas com a crueldade derradeira, flageladas, marcadas em ferro quente, devoradas por feras, esmagadas, mordidas por cobras, a tal ponto que não se poderia pensar em coincidências, pois o verdadeiro tema de todos esses filmes reside, de fato, no sofrimento da carne, sua angústia e sua morte. A cada plano, uma tragédia de ordem física se instaura, um mundo radiante se torna uma forca eriçada de espinhos onde a criatura pregada se debate, transida de horror. Mas a tragédia é entrecortada por momentos de felicidade, que antes deveria ser qualificada de alegria, ou mais fisicamente ainda como prazer, um prazer tão exacerbado quanto a dor que ele apaga, tão verdadeiro é o fato de que essa sensibilidade só existe quando suplicada ou exultante, em todo caso violentamente eletrizada. Eu conheço apenas nos filmes de Cottafavi esse aspecto ensolarado da fotografia, que determina uma crueza de pretos e brancos, estes quase calcificados, que se adequam perfeitamente às cenas em folhagens ou à beira da água. Crueza que indica também, na técnica do Cottafavi deste período, um amadorismo menos recomendável, mesmo que alguns de seus resultados nos encantem, já que não aderimos ao princípio em voga durante os últimos meses, segundo o qual uma câmera que treme necessariamente é genial, ou uma fotografia acinzentada de atualidade possui mais estilo que as iluminações precisas que proporcionam vida e brilho. Mas Cottafavi, dizíamos, inventa o cinema: é preciso perdoá-lo pela falta de jeito autodidata, preciosidades juvenis, enquadramentos desajeitados, decupagem por vezes emperrada - o motor tosse, mas dá partida novamente. 

(...)

É o único cineasta que explora sistematicamente a instalação da crise, ao invés de passar de uma vez à sua expressão instalada. Toda a atenção é fixada sobre a passagem entre a calmaria e a tempestade, segundo infinito no qual o ser é surpreendido em uma íntima transformação que o desapossa de sua liberdade e de sua consciência lúcida, o orienta totalmente na direção de um fim único e, por assim dizer, o mineraliza em sua paixão. É esta petrificação do ser que a câmera descobre, nos dando a mais vertiginosa sensação de violação de um segredo, de penetração em uma zona proibida, como aquilo que se pinta sobre a face de uma mulher no instante onde o prazer apodera-se dela e a carrega. 

Michel Mourlet - "Du côté de Racine" (Présence du Cinéma, nº 9, dezembro de 1961). 















quinta-feira, 30 de abril de 2020

Sinopse de Hiroshima Meu Amor, por Marguerite Duras


Estamos no verão de 1957, em Agosto, na cidade de HIROSHIMA.
Uma mulher francesa, de cerca de trinta anos, está na cidade. Veio aqui para interpretar um filme sobre a paz.
A história começa na véspera do regresso a França desta francesa. O filme em que ela toma parte está, com efeito, terminado. Falta apenas filmar uma sequência.
É na véspera do seu regresso a França que esta francesa, cujo nome nunca será mencionado no filme, que esta mulher anónima, portanto, encontrará um japonês (engenheiro ou arquitecto) e terá com ele uma breve ligação amorosa.
As condições do seu encontro nunca serão esclarecidas no filme. Não é aí que reside o problema. Por todo o mundo as pessoas se encontram. O que importa é o que se segue a esses encontros quotidianos.
Este par unido por acaso não é visto no início do filme. Nem ela, nem ele. Em vez do par, vêem-se corpos mutilados – à altura da cabeça e das ancas –, em movimento – ao amarem-se ou enfrentando a agonia –, e cobertos, sucessivamente, por cinzas, poalhas, pela morte atómica, enfim, pelos suores do amor praticado.
Só a pouco e pouco surgirão, desses corpos informes e anónimos, os corpos deles.
Estão deitados num quarto de hotel. Estão nus. Corpos lisos. Intactos.
De que falam eles? De HIROSHIMA, justamente.
Ela diz-lhe que viu tudo em HIROSHIMA. Vê-se o que ela viu. É horrível. Entretanto, a voz dele, negativa, acusará as imagens de mentirosas, repetindo, no seu tom impessoal e insuportável, que ela nada viu em HIROSHIMA.
O primeiro diálogo entre eles será portanto alegórico. Será, em resumo, um diálogo de ópera. É impossível falar de HIROSHIMA. Quando muito, pode-se falar da impossibilidade de falar de HIROSHIMA, pois parte-se do princípio de que o conhecimento de HIROSHIMA é um logro exemplar do espírito.
Este início, este desfile dos já célebres horrores de HIROSHIMA evocado numa cama de hotel, esta sacrílega evocação, em suma, é voluntária. Pode-se falar de HIROSHIMA em qualquer parte, mesmo numa cama de hotel, durante um encontro de acaso, um amor adúltero. Os dois corpos dos heróis realmente enamorados lembrar-nos-ão. O que é verdadeiramente sacrilégio, se de sacrilégio se pode falar, é a própria HIROSHIMA. Não vale a pena ser hipócrita e desviar a questão.
Por muito pouco que lhe tenha sido mostrado do Monumento de HIROSHIMA, desses terríveis vestígios de um Monumento do Vazio, o espectador terá de sair desta evocação bem limpo de muitos preconceitos e pronto a aceitar tudo quanto vai ser dito sobre os nossos dois heróis.
Ei-los que tornam, agora, à sua própria história.
História banal, história que todos os dias acontece milhares de vezes. O japonês é casado e tem filhos. A francesa também é casada e tem dois filhos. Estão a viver uma aventura que não passará daquela noite.
Mas onde? Em HIROSHIMA.
Este abraço, tão banal, tão de todos os dias, passa-se naquela cidade do mundo onde menos imaginaríamos: HIROSHIMA. Nada é “dado” em HIROSHIMA. Uma peculiar auréola envolve todas as palavras, todos os gestos, de mais de um sentido que o literal. Aqui reside uma das intenções mais importantes deste filme: acabar com a descrição do horror pelo horror, que os próprios Japoneses já realizaram, fazendo renascer esse horror das cinzas ao inscrevê-lo num amor inevitavelmente especial e “maravilhoso”. Neste amor se acreditará melhor do que se ele estivesse produzido em qualquer outra parte do mundo, num local que a morte não tivesse conservado.
Entre estes dois seres, tanto quanto possível separados geograficamente, filosoficamente, historicamente, economicamente, racialmente, e outras palavras em “mente”, HIROSHIMA será o terreno comum (o único no mundo, talvez?) onde os dados universais do erotismo aparecerão sob uma luz implacável. Em qualquer parte que não seja HIROSHIMA, o artifício é válido. Em HIROSHIMA, ele não pode existir sob pena, ainda, de ser negado.
Ao adormecer, falarão ainda de HIROSHIMA. De uma maneira diferente. À luz do desejo e, talvez sem o saber, do amor nascente.
As suas conversas tratarão tanto deles próprios como de HIROSHIMA. E as suas afirmações serão confundidas, misturadas de tal forma, desde então – depois da ópera de HIROSHIMA – que não será possível distingui-las umas das outras.
A sua história pessoal, por mais curta que seja, sobrepõe-se sempre a HIROSHIMA.
Se esta condição não fosse mantida, este filme, mais uma vez, não passaria de uma obra de encomenda, sem qualquer interesse, salvo o de um documentário romanceado. Se esta condição for observada, chegaremos a uma espécie de falso documentário sobre a lição de HIROSHIMA bem mais convincente do que um documentário de encomenda.
Eles despertarão. E voltarão a conversar, enquanto ela se veste. De várias coisas e também de HIROSHIMA. Porque não? É natural. Estamos em HIROSHIMA.
E ela aparece de repente, completamente vestida de enfermeira da Cruz Vermelha.
(Com este trajo, que é, em suma, o uniforme da virtude oficial, ele deseja-la-á de novo. Quererá voltar a vê-la. Ele é como toda a gente, como todos os homens, exactamente, e existe neste disfarce um factor erótico comum a todos os homens. Eterna enfermeira de um guerra eterna...)
Porque não quer ela, então, se também o deseja, voltar a vê-lo? Ela não dá razões claras.
Ao despertar, falarão também do passado dela.
Que se passou em NEVERS, sua cidade natal, nessa Nièvre onde ela foi criada? Que se teria passado na sua vida para que ela seja assim: tão livre e tão acossada ao mesmo tempo, tão honesta e tão desonesta ao mesmo tempo, tão equívoca e tão clara? Tão desejosa de viver amores de acaso? Tão cobarde perante o amor?
“Um dia”, diz-lhe ela, “um dia em NEVERS, estive doida”. Doida de maldade. Diz-lho como diria que uma vez, em NEVERS, tinha conhecida uma inteligência decisiva. Da mesma maneira.
Se é este “incidente” de NEVERS que explica a sua conduta actual em HIROSHIMA, ela não o diz. Narra o incidente de NEVERS como uma coisa diferente. Sem citar a sua causa.
Vai-se embora. Decidiu não tornar a vê-lo.
Mas voltarão a ver-se.
Quatro horas da tarde. Praça da Paz em HIROSHIMA (ou em frente do hospital).
Os operadores cinematográficos afastam-se (a única maneira como são vistos no filme é a afastarem-se com o material). Desmancham-se as tribunas. Arreiam-se as bandeirolas.
A francesa dorme à sombra (talvez) de uma tribuna que estão a desmontar.
Acabaram de filmar uma fita edificante sobre a Paz. Um filme de maneira nenhuma ridículo, apenas mais um filme, só isso.
Passa um japonês entre a multidão que mais uma vez rodeia o cenário do filme que acabam de terminar. Este homem é o mesmo que vimos no quarto, de manhã. Vê a francesa, pára, vai até junto dela e vê-a dormir. O olhar dele acorda-a. Olham-se. Desejam-se muito. Ele não está ali por acaso. Veio para voltar a vê-la.
O desfile terá lugar quase a seguir ao encontro deles. É a última sequência do filme que estão a filmar. Desfiles de crianças, desfiles de estudantes. Cães. Gatos. Basbaques. HIROSHIMA inteira estará presente, como sempre que se trata de servir a Paz no mundo. Desfile já barroco.
O calor será muito. O céu ameaçador. Eles esperarão que o desfile passe. É enquanto este decorre que ele lhe dirá que julga amá-la.
Levá-la-á para casa dele. Falarão muito pouco das suas existências respectivas.
São pessoas felizes com o casamento e que não procuram, juntos, qualquer contrapartida para uma infelicidade conjugal.
É em casa dele, e durante o amor, que ela começará a falar de NEVERS.
Ela fugirá outra vez de casa dele. Irão a um café, sobre o rio, “para matar o tempo antes da partida”. Caiu a noite.
Demorar-se-ão ainda algumas horas. O seu amor aumentará na razão inversa do tempo que lhes restará antes da partida do avião, no dia seguinte de manhã.
É neste café que ela lhe dirá porque esteve doida em NEVERS.
Raparam-lhe a cabeça em NEVERS, em 1944, aos vinte anos. O seu primeiro amante foi um alemão. Morto aquando da Libertação.
Deixaram-na numa cave, de cabeça raspada, em NEVERS. Só quando HIROSHIMA aconteceu é que ela esteve em estado de sair da cave e de se misturar à alegre multidão das ruas.
Porque escolher esta desgraça pessoal? Sem dúvida porque também ela é, ela própria, um absoluto. Rapar a cabeça a uma rapariga porque ela amou um inimigo declarado do seu país é um absoluto tanto do horror como da estupidez.
Veremos NEVERS, tal como já a víramos no quarto. E eles voltarão ainda a falar de si próprios. Mais uma vez, fusão de NEVERS e do amor, de HIROSHIMA e do amor. Tudo se misturará sem princípio preconcebido e da mesma maneira como esta fusão se verifica todos os dias, em toda parte onde casais faladores se encontram pela primeira vez.
Ela também não ficará ali. Voltará a fugir-lhe outra vez.
Tentará voltar ao hotel, acalmar o seu estado de espírito, mas não o conseguirá: sairá do hotel e voltará para o café, que já está fechado. E aí ficará. Lembrar-se-á de NEVERS (monólogo interior), do próprio amor, portanto.
O homem seguiu-a. Ela apercebe-se disso. Olha-o. Olham-se com o maior amor. Amor sem objectivo, estrangulado como o de NEVERS. Já afastado, portanto, no esquecimento. Portanto, perpétuo. (Salvaguardado pelo próprio esquecimento).
Ela não irá ter com ele.
Vagueará pela cidade. E ele segui-la-á como quem segue uma desconhecida. Num dado momento, abordá-la-á e pedir-lhe-á que fique em HIROSHIMA, como num aparte. Ela dirá que não. Recusa-se a toda a gente. Vulgar cobardia.
A sorte está lançada para eles.
Ele não insistirá.
Ela vagueará pela estação. Ele irá ter com ela. Olhar-se-ão como se fossem sombras.
Nem mais uma palavra a dizer, daí em diante. A iminência da partida imobiliza-os num silêncio fúnebre.
Trata-se, na verdade, de amor. Não têm outra coisa a fazer senão calar-se. Uma cena final terá lugar dentro de um café. Aí, encontrá-la-emos com outro japonês.
E sentado a uma mesa está aquele outro japonês que ela ama, completamente imóvel, sem qualquer reacção que não seja a de um desespero livremente consentido, mas que o ultrapassa fisicamente. É como ela já pertencesse a “outros”. E ele não pode deixar de o compreender.
De madrugada, ela voltará ao quarto. Ele baterá à porta alguns minutos depois. Era-lhe impossível evitá-lo. “Impossível deixar de vir”, desculpar-se-á.
E no quarto nada se passará. Estarão ambos reduzidos a uma terrível impotência mútua. O quarto, “ordem do mundo”, permanecerá imutável em torno deles, que nunca mais perturbarão essa ordem.
Nada de troca de confissões. Nem um gesto sequer.
Baptizar-se-ão ainda, simplesmente. Como? NEVERS, HIROSHIMA. Com efeito, ainda não são alguém aos olhos um do outro. Têm nomes de lugares, nomes que o não são. É como se a desgraça de uma mulher com a cabeça rapada em NEVERS e a desgraça de HIROSHIMA se correspondessem EXACTAMENTE.
Ela dir-lhe-á: HIROSHIMA é o teu nome.

(Tradução de Maria José Palla e M. Villaverde Cabral).