segunda-feira, 5 de outubro de 2020

"Leone na guerra", por Serge Daney

"Se, como a percepção, o filme é uma alucinação verdadeira, certos filmes são verdadeiras alucinações. Resta deles – persistente – uma imagem, apenas uma. Ou um ritornello, assinado por Morricone. Todo mundo os viu, pensa que os viu ou acredita que todo mundo os tivesse visto. Eles não se distinguem mais do impacto que eles tiveram, da paisagem que eles abriram ou dos clones que lhes deram continuidade. Tanto é que quando cruzamos com eles na tela pequena ficamos perplexos ao redescobrir aquele estado de frescor que eles – e nós também – tinham em seu nascimento. É o caso, por exemplo, dos três primeiros faroestes de Sergio Leone (chamados “spaghettis” sem dúvida porque seu autor, no fundo, é feito da boa massa com a qual se faziam os humanistas) e de Três Homens em Conflito, que o canal France 3 exibiu na segunda à noite.

O filme começa pelo que terminou por restar dele, por este exibicionismo de entradas no campo e na ação, comparável (tanto o dizemos que é um clichê) às grandes árias das óperas veristas. Três atores pertencentes a três mundos do cinema (Wallach vem principalmente de Kazan, Van Cleef foi coadjuvante em Ford, Eastwood ainda não é Eastwood) se entregam à jubilação de três recitativos e se preparam lentamente para disputar entre si um tesouro perdido de duzentos mil dólares. Tudo passa por seus olhos (mais do que pelas suas interpretações), olhos que estão lá mais para serem vistos do que para ver. Franzidos, odiosos ou redondos, esses órgãos da visão não impedem seus detentores de desperceber a única realidade da época: a guerra civil (chamada, em nosso país, 'de Secessão').

Pois é aí que a revisão na TV de Três Homens em Conflito se revela uma experiência fascinante. O verdadeiro filme não se assemelha à lembrança que ele havia deixado. Não há três personagens, mas quatro, e se é preciso quarenta minutos para introduzir os primeiros, é preciso ainda mais para permitir ao quarto – a guerra – deslizar sobre o quadro e pesar sobre ele cada vez mais. De modo que entre o momento em que nós sabemos que o tesouro está enterrado no cemitério de Sad Hill e aquele em que, enfim, nós chegamos ali, a palavra (e a imagem) do cemitério mudou de sentido. É o filme que se encarregou de nos lembrar de que em um cemitério há mais cadáveres de soldados mortos do que tesouros enterrados. Didatismo sutil o de Leone: não se diz que existe a guerra, apenas se a encontra no curso do filme e se sente subitamente que ela está instalada há muito tempo e é um horror.

O que é belo, o que faz desse filme um grande filme sobre a guerra em geral, é que Leone não mescla mais os gêneros. Pela honestidade do artista ou pela intuição premonitória do futuro que aguarda o cinema. De um lado, ele propõe uma nova maneira de fazer flutuar os corpos em seus sobretudos e as figuras no deserto de uma paisagem ampla demais para elas. Figuras tautológicas, desconectadas de quase tudo, que não possuem nada além de um pouco de malícia e muita elegância quanto ao manuseio de objetos. Figuras que a publicidade, a moda e o videoclipe olharam muito desde então. E ao mesmo tempo, assim que a tela é povoada e que a guerra a bloqueia com pequenos soldados de carne e chumbo, Leone filma de forma diferente. Em plano geral, com o maior pudor e um respeito pelas distâncias e pelos personagens, o que irresistivelmente faz pensar naquele outro grande sentimental, pouco dado aos massacres fotogênicos, que foi John Ford. Exatamente como se Leone prolongasse por alguns anos a herança fordiana enquanto mostra a nova paisagem, aquela que vem depois e que não é mais da mesma ordem.

Pode acontecer (embora isso seja um defeito) de um filme conter muitos filmes. É raro que um filme se localize precisamente na encruzilhada entre a arte clássica cujo segredo logo estará perdido e as proposições barrocas cujas receitas serão um grande sucesso. É raro que um diretor seja honesto (ou esquizoide?) o bastante para simplesmente justapor, sem qualquer reconciliação possível, o que não é mais compatível. É ainda mais raro que, ao invés de sofrer por essa divisão, seu talento prospere sobre ela. É mais tarde, talvez, que o Leone de Era uma Vez na América sofrerá, quando ele tentar restaurar o classicismo no coração de um cinema que até lá terá absorvido de maneira irreconhecível o seu próprio maneirismo. Em 1966, é diferente. Sergio Leone está tanto à frente de todos quanto atrasado atrás de todos, portanto na hora certa". 


(O texto, publicado originalmente no Libération (dezembro de 1988), foi republicado em Devant la recrudescence des vols de sacs à main (Ed. Aléas, 1991) e consta também no livro Sergio Leone, escrito por Jean-Baptiste Thoret (Ed. Cahiérs du Cinéma, 2007). A tradução foi feita por mim a partir do original em francês e de uma tradução em inglês). 

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