quarta-feira, 27 de abril de 2022

A última tentação do primeiro Rambo, por Serge Daney

"Uma vez que se tornou impossível separar um filme do fenômeno de massa que ele se tornou, uma vez que um herói de celulóide se tornou um emblema multiuso, é útil rever o filme na televisão, tal como, em si mesmo, a telinha o acolhe. Liberto de sua aura, ele se torna novamente aquilo que começou sendo: imagens e sons entre outras imagens e outros sons. Acontece até de ele não perder nada nessa reciclagem modesta. 


Sobrecarregados pelos avatares recentes, Rambo 2 e 3, ainda temos suficiente sangue frio para restituir a Rambo 1 (assinado por Ted Kotcheff) suas qualidades iniciais. Como John Rambo, herói do Vietnã, se tornou fera enraivecida é a questão do filme. Como Rambo – o filme – se degenerou em “sequências” cada vez mais idiotas é a mesma questão. Como já não é mais possível, certamente, continuar o que foi começado é ainda a mesma questão, colocada desta vez ao cinema como um todo. Ela vale tanto para Rambo quanto para Rocky, ou seja, para Stallone, que foi grande e depois grotesco em ambos. Explorar um filão de filmes, hoje, equivale a traí-lo na primeira oportunidade. Antes de ser um bruto vingativo, Rambo foi um animal caçado em estado de legítima defesa. Rambo, na verdade, não existe, e se ele começa sendo tão doce, tão sensível, é porque, na época (1983), a América não havia se reconciliado totalmente com sua guerra, e porque Jane Fonda ainda não havia se desculpado aos veteranos. Quando a América pôs fim ao seu luto vietnamita, Rambo ganhou em bíceps o que ele perdeu, de forma definitiva, em neurônios. A série não possui lógica própria: ele é uma pesquisa de opinião “em progresso”. 


Isso não impede que o televisionamento do primeiro Rambo seja uma das coisas mais agradáveis que existem. Tudo é claro nesse filme que tem as qualidades do cinema primitivo americano, dispondo a ação no centro da imagem e as motivações no centro dos diálogos. Tudo é claro porque a única coisa não-tão-clara (a guerra do Vietnã, ainda recente) só é evocada no final do filme, quando Rambo, em lágrimas, se entrega. Nesse meio tempo, tudo acontece sob forma de trauma, como a “atuação” demasiado criticada do ator Sylvester Stallone. 


Rambo não é somente um filme sobre alguém que quase perdeu o poder da palavra: ele é, mais profundamente, um filme mudo. Mudo sobre as grandes questões das quais ele retarda ao máximo a formulação. Mudo sobre as causas recalcadas e os fins últimos, mudo diante da violência e da natureza. É preciso saber reconhecer Stallone por ter reinventado, para este filme, uma dramaturgia do olho franco e do olhar-semáforo. Isso faz com que ele pareça com os atores dos primeiros faroestes, absolutamente silenciosos, traumatizados por quase nada e se agitando na natureza hostil. 


Se Rambo fosse um faroeste, Rambo seria um Indígena. Não o Indígena dominado que vemos nos filmes de DeMille, mas o Indígena em cólera que voltou para desafiar seus ex-dominadores que o Vietnã dominou. Essa passagem pelo faroeste é a melhor parte do filme, e a mais significativa também. Rambo não precisa de roteiro porque Rambo é seu roteiro, isto é, sua memória. Memória recente do trauma vietnamita, memória antiga do genocídio indígena, memória pura e simples do povo americano na medida em que ele não deve esquecer que ele também é um povo guerreiro. No contato (um pouco rude) com Rambo, e graças à guerra que ele lhes declara por si mesmo, as “forças da ordem” de uma cidade pequena dos Estados Unidos reaprendrem a lutar. É o sacrifício de Rambo: sua dimensão crística. A ele o calvário, aos outros a tomada de consciência. Nesse sentido, Rambo é um verdadeiro Cristo e sua “última tentação” (essa de ser apenas um homem como os outros) coincide com o “primeiro sangue” (aquele que, por pura crueldade, fizeram-lhe sangrar). Aí está alguém que, pelo menos, salva o mundo, em vez de viver, como seu futuro irmão pequeno scorseseano, os tormentos esnobes do individualismo contemporâneo. 


É exatamente por isso que tanta gente se identificou com seu corpo de fisiculturista masoquista. Todos aqueles para quem o individualismo ainda é um luxo se reconhecem nos heróis salvadores, e eles nunca são especialmente atentos quanto à natureza última do que é salvo. Pois esses heróis demasiado sérios que os fazem rir acabam por salvá-los de pelo menos uma coisa: do tédio".


(Publicado em Devant la recrudescence des vols de sac à main. Tradução: Luiz Fernando Coutinho).

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