sábado, 6 de fevereiro de 2021

O Altar dos Vivos, por Jean-Marie Samocki

"He had done many things in the world - he had done almost but one: he had never, never forgotten" (Henry James, The Altar of the Dead)

"She would sleep, she would wake, she would walk and she would forget" (A Maldição da Mansão Bly, episódio 8

"A sequência parece insignificante, mas ela tem seu segredo. Ela se encontra em Doutor Sono (2019), a adaptação por Mike Flanagan do romance que Stephen King escreveu 35 anos depois de O Iluminado e que narra o destino de Danny Torrance, o menino encurralado pelos fantasmas do hotel Overlook. Dois espectadores assistem a um jogo de baseball. À primeira vista, trata-se só de um plano de cobertura que introduz um novo lugar: o estádio onde joga o adolescente que será atrozmente assassinado. Flanagan, que monta ele próprio seus filmes, desacelera a ação, seguindo nisto King, antes de expor o acontecimento horrífico. Por que esse plano? O espectador com barbicha é Danny Lloyd, o garoto que aos seis anos interpretava Danny na adaptação de O Iluminado por Stanley Kubrick. Isto poderia ter sido um cameo a mais, uma homenagem entre outras, mas ninguém conhece o rosto de Lloyd, que quase nunca falou de sua experiência de criança. É uma confissão e uma assinatura. 

As crianças secretas 

Cada filme de Flanagan desperta uma criança escondida no corpo de um adulto. O que ele faz de Danny Lloyd no tempo de um plano breve, ele alarga e aprofunda com Henry Thomas. Este ator aparece em seus filmes e séries desde 2016: padre exorcista em Ouija: Origem do Mal (2016), pai incestuoso em Jogo Perigoso (2017), pai jovem em A Maldição da Residência Hill (2018), tio protetor em A Maldição da Mansão Bly (2020). É ele também que, em Doutor Sono, retoma o papel icônico de Jack Nicholson: Jack Torrance, o pai de Danny. Por que tanto lhe propor papéis de pai atormentado? Será porque era ele o menino de E.T., ao lado de Drew Barrymore? Fazendo-lhe endossar todas as figuras paternais, Flanagan cria uma genealogia imaginária que liga uma criança inocente que quer acompanhar um extraterrestre até sua casa a pais feridos, confusamente à procura de uma condenação ou de uma absolvição. Também com atrizes em papéis recorrentes (Carla Gugino, Victoria Pedretti, e, sobretudo, Kate Siegel, com quem ele é casado), ele inventa uma família que, de filme a filme, por efeitos de semelhança e de identificação, refaz o mesmo caminho em direção à rememoração, sempre com aquela questão lancinante: o que aconteceu entre ontem e hoje? Aconteceu realmente alguma coisa? 

O desmembramento entre o tempo presente e uma época traumática é uma constante. Quando o irmão e a irmã de O Espelho (2013) retornam à mansão familiar onde seu pai se matou, eles se desdobram de um plano ao seguinte, passando sem cessar de um estrato de tempo a outro, intercambiando seus corpos de 20 anos com sua aparência de criança. Em A Maldição da Mansão Bly, seus corpos permanecem, por outro lado, idênticos a eles mesmos. Mas o tempo não passa mais: os raccords, contra a linearidade cronológica, exploram uma profundidade de passado que escapa mesmo ao personagem, preso nos limbos da narrativa, em fragmentos de memória que servem apenas para desembocar sobre um único momento – a consciência de sua própria morte. 

Os mortos que se ignoram coabitam com os vivos que sofrem sem fim. Os personagens, para citar um comentador de Henry James, o filósofo David Lapoujade, são 'refletores', 'consciências'Ninguém se dá conta do que eles experimentam, e nem mesmo eles. Ninguém se dá conta de que eles já estão mortos, e nem mesmo eles. É a revelação desconcertante do final do quinto episódio de A Maldição da Residência Hill, quando vemos enfim o rosto da moça do pescoço torto. Como decidir entre os fantasmas e os vivos de Bly Manor? Esse projeto está em curso desde Absentia (2011), o primeiro filme fantástico de Mike Flanagan, e mais precisamente desde seu último plano: o fantasma de uma mulher vê um homem partir à sua procura. Depois de o espectador ser mantido durante todo o filme com os vivos, o último plano muda a perspectiva. Flanagan sistematiza circulações de um plano a outro, contracampos impossíveis graças aos quais um personagem pode dialogar com aquele que ele ou ela era dezenas de anos atrás. Seus diferentes 'eu' acolhem seus diferentes mortos. As personae se difratam e se dividem sem fim. 

Altar Overlook [1] 

Multiplicando as variações de pontos de vista, Flanagan modifica deliberadamente o que pudéramos reter das novelas de Henry James. A crueldade é mais rara, as relações de predação não são mais a lei desse mundo, a espera metafísica desaparece em função de uma esperança mais sentimental. E sobretudo: os mortos, aqui, se recordam dos vivos, encarregam-se deles, habitam seu mundo, não por consolação mas para fornecer um porvir a sua solidão. Seus espectros possuem sempre a mesma face. De Absentia ao oitavo episódio de A Maldição da Mansão Bly, os traços são apagados, a boca é apenas um largo buraco, são sentinelas que se recordam, mas pouco a pouco o esquecimento vem, lhes desapossando de sua cólera e borrando sua forma. Também os screamers e os jump scares são frequentemente ineficazes. Seus fantasmas pertencem ao melodrama. Sob o risco de forçar a barra, mesmo esse filme de encomenda para adolescentes que é Ouija: Origem do Mal está mais próximo de O Fantasma Apaixonado do que de O Exorcista. Eles não têm mais raiva. Há somente tristeza. Ninguém se move, todo mundo volta. 

É o paradoxo de suas ficções: dar a impressão de nunca sair de uma casa e pensar somente em ali regressar. A romancista surda de Hush: A Morte Ouve (2016) é presa em sua residência por um psicopata, e quando ela sai de sua casa-armadilha, ela quer o quanto antes voltar porque esta é seu único abrigo. Dani, a jovem au pair de A Maldição da Mansão Bly, toma todo um episódio (o ultimo) para compreender que, uma vez que ela abandonou a mansão, sua vida se resume a possuir a força para ali retornar. Um outro Danny, Torrance, para se salvar das forças do mal, decide retornar ao hotel Overlook. Danny ou Dani, é a mesma história: como voltar ao hotel ou a mansão, como poder filmar de novo o lugar onde tudo começou. 

De O Iluminado a Doutor Sono, há menos uma relação de referência que de assombração, a qual ultrapassa o filme. Quando Flanagan filma banheiros e banheiras (o que é frequente em seus filmes desde O Sono da Morte, em 2016), a cada vez ele faz eco ao quarto 237 e à mulher nua que, tão logo a abraçamos, se transforma em feiticeira coberta de escaras. Ela é o alfa e o ômega de Doutor Sono. Danny ali se fecha no início tal como seu duplo feminino, Abra, ali se fechará também no final, em sinal de transmissão como de fidelidade a seus pesadelos pessoais. Mas, logo na sequência de abertura, ele retoma a profundidade de campo da aparição das irmãs gêmeas, a qual ele transpõe ao espaço de um bosque. Ele retoma até mesmo o escritório onde o diretor do hotel recebe Jack para a cena onde o diretor da casa de repouso acolhe Danny. Todos os signos do filme são disseminados, dando a emoção de revisitá-lo como uma antiga casa, vigiando-lhe as mudanças da adaptação, os sentimentos do passado. Diríamos, pensando em Edgar Poe, que a mise en scène se torna uma filosofia de mobiliário.

Medimos a diferença com Steven Spielberg, que, em Jogador Nº 1, também rendeu homenagem à potência inaugural de O Iluminado, fazendo do hotel o lugar de um videogame. Spielberg se dirige àqueles que não conhecem o filme, ritualizando-o como uma matéria imersiva em três dimensões. Flanagan se dirige mais àqueles que o conhecem de cor, como se eles tivessem nascido com e por ele. Isto explica talvez o fracasso comercial do filme e o que ele faz pela Netflix: narrativas endereçadas a jovens adultos que sem dúvida nunca leram Henry James, e do qual ele conserva uma trama, um nome, uma situação, até que se dê a vontade de descobrir a cultura clássica – o que simboliza um episódio em preto e branco e sustentado essencialmente por uma voz off ou os trechos de filmes vistos em um aparelho de televisão, como senhas ou signos clandestinos, de Ladrão de Casaca de Alfred Hitchcock a Sabrina de Billy Wilder. 

O quarto vermelho 

A relação com Spielberg não é, entretanto, fortuita, e o final de um de seus filmes parece fornecer o valor do cinema de Flanagan, com suas ambições e seus limites atuais. Trata-se de A.I – Inteligência Artificial. Ao término de uma odisseia que desafia o tempo, o jovem David pode encontrar sua mãe, o tempo de um dia, e afundar-se na ilusão de um amor eterno. Este final é um ponto de chegada. Stéphane Delorme havia comentado: 'David espera sua imagem matricial (a silhueta com os braços estendidos), Spielberg também, que parece esperar a fantasia de seu cinema (uma criança boa com sua mãe) denunciando-lhe a utopia' (Cahiers nº 563). O sonho de Flanagan seria, pelo contrário, estender essa fantasia às dimensões da série contemporânea, multiplicando à exaustão as recorrências das imagens matriciais, fazendo delas um começo inexaurível. Os sentimentos encontram um laboratório onde as cenas traumáticas podem ser revividas para serem aceitas, superadas, reconstruídas, parodiadas, imitadas, deslocadas – e finalmente domesticadas. Trata-se obsessivamente de amar, de perder, de morrer e de se pôr de volta a amar. Há dois riscos: o quarto frio, onde os sentimentos dão vida a cadáveres em suspensão (uma das irmãs de A Maldição da Residência Hill restaura o rosto dos defuntos), e o 'quarto verde', aquele de Truffaut adaptando O Altar dos Mortos, onde os vivos velam os mortos sem saber que é o inverso que é verdadeiro. 

Haveria um terceiro quarto: o quarto vermelho, fazendo eco a David Lynch. As aparições em Jogo Perigoso e em Doutor Sono de Carel Struycken, o famoso gigante que assombra os sonhos do agente Cooper de Twin Peaks, assim como aquela do doutor Jacoby para interpretar o psiquiatra de A Maldição da Residência Hill, são indícios. O que parece buscar Flanagan, cada vez mais, é uma desmedida órfica, a necessidade de se perder nos labirintos do sentimento em nome da aspiração a um retorno, a uma libertação: passar do abandono do outro ao abandono de si. No entanto, os últimos planos de A Maldição da Mansão Bly vão nesta direção, aliando uma forma de puerilidade a uma mitologia que não é ainda violada. Uma mulher mergulha para salvar outra, sua mão se estica, mas a mulher viva não pode apagar a morte. É preciso projetar-se no futuro para ver como esse abraço impossível criou a espera do fantasma e a fantasia do retorno. A mulher viva busca a morte nos reflexos de sua banheira, ela deixa a porta aberta. Mesmo que ela narre suas fantasias, o espectador ainda vê uma criança, sozinha com ela mesma". 

Jean-Marie Samocki, Cahiers du Cinéma, nº 772, janeiro de 2021. 

[1] Em francês, autel (altar) e hôtel (hotel) são palavras parônimas, ou seja, são pronunciadas de forma semelhante. No original, o autor faz um jogo de palavras: Overlook Autel [N. do. T].

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