"Uma vez que se tornou impossível separar um filme do fenômeno de massa que ele se tornou, uma vez que um herói de celulóide se tornou um emblema multiuso, é útil rever o filme na televisão, tal como, em si mesmo, a telinha o acolhe. Liberto de sua aura, ele se torna novamente aquilo que começou sendo: imagens e sons entre outras imagens e outros sons. Acontece até de ele não perder nada nessa reciclagem modesta.
Sobrecarregados pelos avatares recentes, Rambo 2 e 3, ainda temos suficiente sangue frio para restituir a Rambo 1 (assinado por Ted Kotcheff) suas qualidades iniciais. Como John Rambo, herói do Vietnã, se tornou fera enraivecida é a questão do filme. Como Rambo – o filme – se degenerou em “sequências” cada vez mais idiotas é a mesma questão. Como já não é mais possível, certamente, continuar o que foi começado é ainda a mesma questão, colocada desta vez ao cinema como um todo. Ela vale tanto para Rambo quanto para Rocky, ou seja, para Stallone, que foi grande e depois grotesco em ambos. Explorar um filão de filmes, hoje, equivale a traí-lo na primeira oportunidade. Antes de ser um bruto vingativo, Rambo foi um animal caçado em estado de legítima defesa. Rambo, na verdade, não existe, e se ele começa sendo tão doce, tão sensível, é porque, na época (1983), a América não havia se reconciliado totalmente com sua guerra, e porque Jane Fonda ainda não havia se desculpado aos veteranos. Quando a América pôs fim ao seu luto vietnamita, Rambo ganhou em bíceps o que ele perdeu, de forma definitiva, em neurônios. A série não possui lógica própria: ele é uma pesquisa de opinião “em progresso”.
Isso não impede que o televisionamento do primeiro Rambo seja uma das coisas mais agradáveis que existem. Tudo é claro nesse filme que tem as qualidades do cinema primitivo americano, dispondo a ação no centro da imagem e as motivações no centro dos diálogos. Tudo é claro porque a única coisa não-tão-clara (a guerra do Vietnã, ainda recente) só é evocada no final do filme, quando Rambo, em lágrimas, se entrega. Nesse meio tempo, tudo acontece sob forma de trauma, como a “atuação” demasiado criticada do ator Sylvester Stallone.
Rambo não é somente um filme sobre alguém que quase perdeu o poder da palavra: ele é, mais profundamente, um filme mudo. Mudo sobre as grandes questões das quais ele retarda ao máximo a formulação. Mudo sobre as causas recalcadas e os fins últimos, mudo diante da violência e da natureza. É preciso saber reconhecer Stallone por ter reinventado, para este filme, uma dramaturgia do olho franco e do olhar-semáforo. Isso faz com que ele pareça com os atores dos primeiros faroestes, absolutamente silenciosos, traumatizados por quase nada e se agitando na natureza hostil.
Se Rambo fosse um faroeste, Rambo seria um Indígena. Não o Indígena dominado que vemos nos filmes de DeMille, mas o Indígena em cólera que voltou para desafiar seus ex-dominadores que o Vietnã dominou. Essa passagem pelo faroeste é a melhor parte do filme, e a mais significativa também. Rambo não precisa de roteiro porque Rambo é seu roteiro, isto é, sua memória. Memória recente do trauma vietnamita, memória antiga do genocídio indígena, memória pura e simples do povo americano na medida em que ele não deve esquecer que ele também é um povo guerreiro. No contato (um pouco rude) com Rambo, e graças à guerra que ele lhes declara por si mesmo, as “forças da ordem” de uma cidade pequena dos Estados Unidos reaprendrem a lutar. É o sacrifício de Rambo: sua dimensão crística. A ele o calvário, aos outros a tomada de consciência. Nesse sentido, Rambo é um verdadeiro Cristo e sua “última tentação” (essa de ser apenas um homem como os outros) coincide com o “primeiro sangue” (aquele que, por pura crueldade, fizeram-lhe sangrar). Aí está alguém que, pelo menos, salva o mundo, em vez de viver, como seu futuro irmão pequeno scorseseano, os tormentos esnobes do individualismo contemporâneo.
É exatamente por isso que tanta gente se identificou com seu corpo de fisiculturista masoquista. Todos aqueles para quem o individualismo ainda é um luxo se reconhecem nos heróis salvadores, e eles nunca são especialmente atentos quanto à natureza última do que é salvo. Pois esses heróis demasiado sérios que os fazem rir acabam por salvá-los de pelo menos uma coisa: do tédio".
(Publicado em Devant la recrudescence des vols de sac à main. Tradução: Luiz Fernando Coutinho).