sábado, 12 de setembro de 2020

Traviata 53

Vittorio Cottafavi ainda não deu o melhor de si, embora seja preciso rever Pecadora Marcada, talvez inteiramente admirável. Mas este filme abandonou nossas telas há mais de dois anos, nos impedindo de verificar um julgamento já antigo. Ali, uma mise en scène surpreendente se encontrava definida, preciosa e paroxística, sem dever nada a ninguém, sobretudo ao neo-realismo então triunfante. Um cinema de paixão, de torturas, de terror e de amor se inventava diante de nossos olhos maravilhados, em gestos raros, em olhares de pedra, gelo e metal, em silêncios ensurdecedores. Pudemos encontrar em seguida, principalmente em I Piombi di Venezia, e em menor medida em A Revolta dos Gladiadores e As Legiões de Cleópatra, apesar do interesse intermitente de seu autor por esses dois filmes, os mesmos reflexos de uma sensibilidade super aguda, em torno de certas jovens mulheres tratadas com a crueldade derradeira, flageladas, marcadas em ferro quente, devoradas por feras, esmagadas, mordidas por cobras, a tal ponto que não se poderia pensar em coincidências, pois o verdadeiro tema de todos esses filmes reside, de fato, no sofrimento da carne, sua angústia e sua morte. A cada plano, uma tragédia de ordem física se instaura, um mundo radiante se torna uma forca eriçada de espinhos onde a criatura pregada se debate, transida de horror. Mas a tragédia é entrecortada por momentos de felicidade, que antes deveria ser qualificada de alegria, ou mais fisicamente ainda como prazer, um prazer tão exacerbado quanto a dor que ele apaga, tão verdadeiro é o fato de que essa sensibilidade só existe quando suplicada ou exultante, em todo caso violentamente eletrizada. Eu conheço apenas nos filmes de Cottafavi esse aspecto ensolarado da fotografia, que determina uma crueza de pretos e brancos, estes quase calcificados, que se adequam perfeitamente às cenas em folhagens ou à beira da água. Crueza que indica também, na técnica do Cottafavi deste período, um amadorismo menos recomendável, mesmo que alguns de seus resultados nos encantem, já que não aderimos ao princípio em voga durante os últimos meses, segundo o qual uma câmera que treme necessariamente é genial, ou uma fotografia acinzentada de atualidade possui mais estilo que as iluminações precisas que proporcionam vida e brilho. Mas Cottafavi, dizíamos, inventa o cinema: é preciso perdoá-lo pela falta de jeito autodidata, preciosidades juvenis, enquadramentos desajeitados, decupagem por vezes emperrada - o motor tosse, mas dá partida novamente. 

(...)

É o único cineasta que explora sistematicamente a instalação da crise, ao invés de passar de uma vez à sua expressão instalada. Toda a atenção é fixada sobre a passagem entre a calmaria e a tempestade, segundo infinito no qual o ser é surpreendido em uma íntima transformação que o desapossa de sua liberdade e de sua consciência lúcida, o orienta totalmente na direção de um fim único e, por assim dizer, o mineraliza em sua paixão. É esta petrificação do ser que a câmera descobre, nos dando a mais vertiginosa sensação de violação de um segredo, de penetração em uma zona proibida, como aquilo que se pinta sobre a face de uma mulher no instante onde o prazer apodera-se dela e a carrega. 

Michel Mourlet - "Du côté de Racine" (Présence du Cinéma, nº 9, dezembro de 1961). 















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